11 de dezembro de 2007

Um início


Muito a dizer. Não perco tempo.
Ando a pesquisar a vida de Carlos Frederico Lecor há já algum tempo. Tem algo de masoquista tentar iniciar o mister de autor com um projecto assim tão difícil. E isto por duas razões – nem é vendável, nem é fácil. É, no entanto, e sem sombra de dúvidas, uma história que merece ser contada.

Um Soldado do seu Rei
Numa época em que de soldados patriotas se passou rapidamente a soldados políticos – não deixando nunca de ser soldados ideológicos, Lecor destaca-se não por ser diferente strictu sensu, mas por manifestar um sentido de dever que o levou diligentemente ao topo da carreira. Militar de corpo inteiro, fazia cumprir a disciplina e não permitia que faltasse nada aos seus subordinados. Isso é evidente em muita da minha pesquisa.
Lecor representa o novo oficial português, burguês, da classe média emergente, que entra no Exército nos finais do século XVIII, e que se confronta perante a velha fidalguia. Mas até aí, Lecor difere através da sua auto-disciplina, servindo o General Marquês de Alorna, cerca de 10 anos mais velho, e seu comandante desde 1797 até 1808. Para lá de uma relação de subordinação, há muito claramente uma relação de amizade íntima entre os dois, ambos educados segundo os cânones franceses, ambos filhos das luzes, pese embora a herança cultural distinta dos dois homens.
Lecor é também um homem da artilharia, que com a engenharia, constituía uma forte antítese técnico-ideológica dentro do exército, face às mais tradicionais cavalaria e infantaria. Nas aulas de artilharia dos 4 regimentos portugueses, nomeadamente a impulsionada pelo Coronel (depois brigadeiro) Rebocho, no Algarve, Lecor vê-se perante um rigor técnico que não existia em mais lado nenhum do exército.

A Legião de Alorna
Provavelmente foi esse rigor técnico e inovador que, mais tarde, em 1797 o fez entrar na Legião das tropas Ligeiras, que Alorna criou baseado na filosofia militar francesa. Uma unidade rápida e móvel, constituída por infantaria, cavalaria e artilharia – autónoma e elástica. Alorna decerto pretendia que a experiência alastrasse ao Exército Português, mas este era um animal lento e conservador. Podemos verificar muitas destas histórias em todos os exércitos do mundo.
A Legião do Alorna manteve-se no entanto, e veria a sua herança tomar a razão histórica aquando do formato napoleónico de guerra, nomeadamente a utilização dos chamados Caçadores, ou infantaria ligeira.
Lecor fez parte desse movimento, como ajudante d’ordens de Alorna, e como seu amigo. Terá decerto consolado o seu general em 1805-1806, quando os seus dois filhos morreram, num espaço de 11 meses, um com 19, outro com 18 anos.
Tentou convencer o marquês a fugir, em 1808, para a esquadra inglesa e para o Brasil, quando Junot instigou a necessidade de Portugal ter um rei – ele próprio.
Já Alorna tinha outras ideias, com certeza agastado com o velho exército, imóvel, conservador.
À parte: a do 3.º Marquês de Alorna, Pedro José de Almeida Portugal, seria outra biografia importante de ser escrita. Não conheço nenhuma, e a vida deste homem dava decerto um filme. As implicações de uma tal biografia seriam imensas e seria muito provavelmente algo que venderia bem [ já está escrita, descobri ontem, por José Norton – de comprar!].

Ruptura com Alorna e Novo Capítulo
Lecor cruza muito do mais substancial nesta época de transição mundial, ao qual Portugal responde como pode. Mas ele é um patriota, e não admitindo outro rei que D. Maria e o seu filho, o Príncipe-regente, D. João, sente que tem de fugir e juntar-se à resistência. Na Inglaterra de 1808, sabe das revoltas em Portugal e, em vez de ir para o Brasil, ajuda a construir uma nova Legião, e embarca para o Porto.
A questão das legiões é interessante e pode motivar um jogo interessante. Legião de Tropas Ligeiras, ou do Alorna; depois, a Legião Portuguesa, Legião Lusitana ou Legion Portugaise (ao serviço de Napoleão); finalmente a Leal Legião Lusitana, de certo modo resposta directa à Legion Portugaise, ajustando ideologicamente com a colocação de ‘Leal’ – não a desleal. O diálogo entre Lecor e Alorna brota, em certo sentido, da herança comum da Legião de 1797. No entanto, enquanto que Alorna sai de cena pela Espanha, largando desertores aos milhares, a legião de Lecor entra em cena gloriosamente no Porto que lidera a restauração de 1808.
Esta época determina uma período da vida de Lecor que acaba. Uma espécie de maioridade política e militar para o Tenente-coronel ajudante d’ordens de Alorna, que se vê Coronel (do R.I. 23, de Almeida) no final do ano quente de 1808, comandante de tropas em Castelo Branco, pronto a deter os franceses que vierem, com a plena confiança dos Ingleses.
Como com todas guerras, notamos claramente uma crescente ideologização da vida militar portuguesa que só vai cessar, se tanto, com a Guerra da Patuleia, quarenta anos depois. Chamemos-lhe a era dos generais políticos. Se bem que óbvia, esta definição de época é fundamental para perceber a vida de Lecor, que se enquadra sem alarido no formato inglês de Beresford, conforme lhe é ditado pelo Rio de Janeiro, ao contrário de Silveira e outros dos ascendentes generais políticos da restauração de 1808. Lecor é um oficial disciplinado, obediente e diligente e tem em mente a anulação da ameaça francesa.

A Guerra Peninsular
A sua carreira cresce exponencialmente de 1808 a 1814, desde Coronel em 20/11/1808 a Marechal de Campo em 4/6/1813. Comanda duas divisões do exército peninsular, uma delas, a 7.ª, na batalha de Nivelle, a outra Portuguesa.
É sempre um bom pupilo dos ingleses, sendo por eles constantemente louvado no treino como na guerra. Não fosse pelo facto de apenas se fazer compreender em francês, poderia talvez passar por inglês. Mas não, era português e continuava a ser o mesmo de sempre, mas favorecido pela época que o convocava a liderar tropas em guerra. A sua faceta de amigo revela-se em 1810 quando da 3.ª invasão francesa, quando faz apelos a Wellington para que possa tentar convencer, de novo, Alorna a retornar à sua Pátria. Mas a guerra não perdoa e assim se vêem portugueses contra portugueses, amigos contra amigos.
Em 1814, Lecor volta a Portugal desde a França rendida, liderando as forças portuguesas do agora extinto Exército Peninsular. Finalmente acabava a ameaça francesa que desde 1807 pairava sobre o Portugal dividido entre o nada poder fazer e o ter que efectivamente fazer.
Nos inícios de 1815, Lecor, ilustre Marechal de Campo, herói português, é nomeado Governador de Armas da Província do Alentejo. De certa forma, é o completar de um círculo, pois era esse o cargo do seu general, aquando da 1.ª invasão francesa em 1807. Um início para um novo período da sua vida, um em que, mudando tudo, não muda nunca a sua vocação de disciplina e de obediência, apesar de, para todos os efeitos práticos, mudar de nacionalidade, conceito que, apesar de tudo, fica bem difuso na sua definição de 1822.
O Portugal de 1815 é um país diferente, o único com a sua capital a sul do Equador, e com o foco estratégico na América do Sul. Assim se forma uma Divisão, a dos Voluntários Reais do Príncipe, destinada a invadir a Banda Oriental do rio da Prata. Lecor é chamado a comandá-la. Beresford escolhe o mais acertado general português, que desde sempre deu provas de ser apolítico, cumpridor e diligente.

O Lecor Brasileiro
Aqui, eu chego a uma época da vida de Lecor, bem documentada, nomeadamente através do livro do general brasileiro Paulo de Queirós Duarte, escrito em 1984, Lecor e a Cisplatina (1816-1828). Apesar de ser um honesto esboço biográfico do militar, não esconde a intenção principal, que é a de relatar a campanha e governo da Cisplatina, centrando-a no General e Governador (Capitão-General). A obra peca por dar pouca importância ao período anterior da vida de Lecor, o que ajudaria a aclarar muito das propriedades do homem. Dá no entanto o básico para nos ajudar a compreender Lecor.