23 de novembro de 2008

Acontecimentos em Faro, 1828


Caros Leitores, enquanto não divulgo mais informação sobre Lecor, pensei diversificar um pouco e entrar na temática sempre interessante da Guerra Civil de 1828 a 1834, nomeadamente no que diz respeito não só a Faro, cidade onde vivo, mas também a familiares de Lecor que nestes acontecimentos participaram.

A Guerra Civil foi o conflito dessa natureza, o mais sangrento e ideologicamente activo. Duas concepções radicalmente diferentes do que devia ser Portugal chocaram de uma forma extremamamente partidarista e agressiva. Assim, como todas as guerras civis, famílias se viam divididas, em cada lado das barricadas. No Algarve, triunfaram na fase inicial do conflito, como em todo o país, os partidários do Absolutismo e de D. Miguel.

Transcrevo uma carta de António Nicolau Sabo, escrita de Gibraltar a 29 de Agosto de 1828, dando conta do que se passou em geral no Algarve e em particular em Faro. A mesma carta foi publicada num apêndice ao periódico "O Padre Amaro, ou Sovéla, Política, Histórica e Literária", em 1828.

Chamo especial atenção à participação de António Pedro Lecor, então Governador da Praça de Faro, e a João Pedro Lecor Buys, oficial de Artilharia e sobrinho de António Pedro (e de Carlos Frederico), filho de Maria Leocádia Leonor Lecor e de João Pedro Buys. Cada um deles escolheu um lado diferente das barricadas.


EXPOZIÇÃO DOS ACONTECIMENTOS DO ALGARVE, POR OCCAZIÃO DA RE-ACLAMAÇÃO D’EL REI, O SENHOR D. PEDRO IV.


Sendo constante no Algarve, por communicações exactas, e verídicas, recebidas de Coimbra, e do Porto, que n’esta Cidade se havia re-aclamados no dia 15 de Maio, no Campo de S. Ouvidio o legitimo Governo de S. M. El Rei o Senhor D. Pedro IV, e que se havia instalado uma Junta governativa, para restaurar os sagrados direitos d'aquelle Augusto Monarcha, e da Nação Portugueza, direitos nefanda, e sacrilegamente violados pelos mais criminosos conspiradores ; foi então que na mesma Província os amantes da Pátria, e do seu legitimo Rei não sofferendo os impulsos dos seus nobres desejos, e inflamados por táo grande exemplo d'honra e brio nacional, tomarão sobre si a empreza de fazer em seu paiz uma igual restauração ainda que fosse á custa dos mais importantes sacrifícios. Para este fim no dia 24 de Maio passado foi convidado o Tenente Coronel Luiz José Maldonado Commandante do 2.º Batalhão d'Infanteria N.º 2, pelo Coronel José de Mendonça Corte Real, commandante do Regimento de Milicias de Lagos, para uma entrevista que se devia fazer em Alvor, aonde devião concorrer alguns Portuguezes, sem se lhes declarar a que fim, o qual, annuindo ao dito convite, se dirigio a mencionada Villa, onde encontrou o Capitão de Milicias — Mello, e juntando-se com o Coronel Luiz Garcia de Bivar, e os Majores Frederico Maurício Peyrant Chateauneuf, d'Artilheria N.o 2, e Francisco Neri Caldeira, de Milicias de Lagos, decidirão que, no caso de se verificarem no seguinte correio as noticias do Porto, immediatamente farião proclamar o legitimo governo de S. M. o Senhor D. Pedro IV., para cujo fim contavaõ com o Regimento de Milícias de Lagos, com um Batalhão de Tavira, com o 2° Batalhão d'Infanteria N.º 2, e com grande parte do 2º. d'Artilheria; mas que desejavaõ saber a opinião do 1.° Batalhão d'Infanteria Nº. 2, então commandado pelo dito Tenente Coronel, Maldonado. Este official declarou que naõ se podia contar com o 1. Batalhão, por estar de sentimentos oppostos á boa causa, á excepção dos officiaes inferiores, sem que primeiro se tivesse realisado a desejada aclamação, nos outros pontos; porque haria sido altamente sedusido o dito lº. Batalhão pelo Capitão do mesmo Ludovico Jozé da Roza, e outros agentes do partido faccioso. A'vista d'esta circunstancia conveio o Coronel Mendonça que se fizesse a aclamação primeiro em Tavira pelo 2º. Batalhão d'Infanteria Nº. 2. seguindo em Faro, para onde o seu Regimento e o 2°. Batalhão marchariâo, e deviSo apparecer ao romper do dia, sem com tudo se desiguar este, e que, na dita cidade, o Major Chateauneuf assumiria o commando do 2.º Regimento d'Artilheria, feita a aclamação; 3°., que em Lagos se fizesse, quando a prudência o dictasse, ou quando se aproximassem forças com que se podesse contar.

No dia 25 ás nove e meia da noute, o Governador da Praça de Lagos, António de Sá Carneiro, e o Capitão Ludovico se dirigiSo ao quartel do Regimento, accompanhados pelo Ajudante da Praça Jozé Elisbão, e causando isto grande novidade ao Tenente Coronel Maldonado marchou immediatamente de sua caza, para lhes ir sahir ao caminho, mas não lhe sendo possível encontra-los os foi achar metidos ás escuras no quartel da Ia. Companhia; á porta do quartel estavSo alguns paizanos, aos quaes se hião reunindo outros armados com piques, os quaes fazião altos alaridos, dando todos repetidos vivas subversivos.

Foi então que o Tenente Coronel Maldonado se dirigio ao Governador, para saber o motivo porque a semilhantes horas entrava no quartel do Regimento ; porem a resposta forão impropérios da parte do Governador accusando a Maldonado de tiahir ao Senhor D. Miguel, e por haver mandado distribuir pólvora ás companhias declarando ter em seu poder uma carta, que tudo denunciava, sabendo-se depois ser a mesma do Tenente Coronel reformado Francisco de Paula Sarrea (pelo qual serviço hoje se acha Coronel Commandame do Regimento de Milicias de Lagos) ouvindo isto os Soldados, e instigados pelo Governador, e Capitão Ludovico, principiarão a amotinar-se, e a lançar mão das armas, e apezar que o Tenente Coronel Maldonado obteve á custa dos maiores esforços tranquiliza-los, foi por momentos; porque os Soldados, sendo de novo instigados pelos dous seductores, se revoltarão de tal maneira, dando vivas ao Governador, e ao Infante, que bastou Loduvico assenar-lhes que fossem buscar a bandeira ao quartel de Maldonado seu Chefe, para romper em altos gritos; e foi então que a 5ª. Companhia, acompanhada de muito povo, e dos mencionados dous seductores, commetteo o attentado de ir tumultuosa, e violentamente a Secretaria do Regimento buscar a dita bandeira, e deposita-la no quartel do Governador ; Maldonado, vendo taes procedimentos se recolheo ao seu quartel, e passado um quarto d' hora teria sido victima da ferocidade brutal do povo, e Soldados amotinados, senão fosse avizado por um fiel sargento, que os preversos se destinavão a ir assassina-lo mesmo ao seu quartel, Maldonado então foi constrangido a refugiar-se, e os preversos continuarão toda a noute em alarmes e gritarias, dando vivas, pedindo mortes, e prisões, capitaneados sempre pelo Governador, e Capitão Luduvico procedendo á prisão de immensas pessoas. Taes são em resumo os fataes accontecimentos de Lagos.

No dia 25 o Major Mello, ignorando totalmente os acontecimentos de Lagos fez re-aclamar em Tavira a El Rei o Senhor D. Pedro IV ; e naõ se deliberando a prender o infame General Palmeirim (alto protector dos inimigos da causa da legitimidade, e o primeiro cooperador dos feitos rebeldes e atrozes do Algarve) por ver a promptidaõ com que o dito General annuira á restauração, naõ se lembrando quanto lhe fora recommendada a prisão, nem conhecendo que um semelhante procedimento da parte do General naõ era mais, que um manejo caviloso, para realisar a seu salvo suas preversas intenções.

Ficando pois Palmeirim em liberdade pôde pelos seus agentes, naõ só rebellar o 1.º Batalhão do 2º. Regimento d'Infanteria, estacionado em Lagos, mas igualmente revoltar o povo de Tavira, com parte da Companhia de granadeiros, e uma d'Artilheria, que alli se achava, chegando o excesso dos amotinadores a tal ponto, que surprehenderaõ o Destacamento de Castro Marim, causado pelo Alferes Joaquim Thomaz de Mendonça Pessanha, e por espaço de uma legoa perseguiraõ a retaguarda do restante do 2°. Batalhão d'Infanteria N". 2, commandado pelo Major Mello, que teve de fazer retirar os Soldados precipitadamente sem levarem mochilas, nem provisões de guerra.

O Coronel Mendonça com o Regimento do seu commando se apresentou nas immediações de Faro na madrugada do dia aprasado; porem o Regimento d'Artilheria No. 2 com a popolaça sabendo que no dia 25, em Tavira se tinha realisado a acclamaçaõ d'El Rei o Senhor D. Pedro IV., se amotinarão por tal forma, que naõ houve excesso algum, que despejadamente naõ commettessem contra os defensores da legitimidade, pedindo a morte dos mesmos, concorrendo em grande parte para esta desordem o apoio do Veriador servindo de Juiz pela Ordenação Manoel Jozé Sanches, e o Coronel, Commandante do Regimento d'Artilheria N.º 2, Joaquim da Cruz, seguindo-se os horrores da anarchia.

Ninguém ignorava em Faro que por meio de dinheiro se seduziaõ havia tempos os Soldados d'Artilheria No. 2, cuja empreza estava a cargo dos cónegos, Felipe Joaquim Gliz e Souza, Manoel Aleixo, Duarte Machado, Jozé Viegas Esperança, e Manoel da Silva Mendonça, assim como dos Beneficiados, António da Ponte Contreiras, Pedro Roiz Taveira, e Jozé Poêro Carajola, o Juiz d'Alfandega, Pedro Vitto de Andrade, distribuindo o dinheiro pelos soldados por via de certos agentes da mais ínfima relé, fazendo persuadir os mesmos que elles iaõ a ser castigados com degredo por naõ haverem annuido ao partido do Infante, quando em Outubro de 1826, se tinhaõ declarado o Regimento N°. 14, e Batalhão de Caçadores N°. 4, e que só poderiaõ escapar ao castigo, fazendo acclamar o Senhor Infante, achando-se até ao presente illudidos pelos seus officiaes, que eraõ todos Pedreiros Livres, aparecendo as mesmas ideas annunciadas em proclamações affixadas junto ao quartel do dito Regimento ; pois bem viaõ os malvados, que naõ tendo o seu partido aquella força militar, naõ podiaõ arrostar com os legitimes amantes d'El Rei o Senhor D. Pedro IV., e tanto que bem poucos homens de consideração deixarão de ser presos, ou fugirão. Avizado o Coronel Mendonça do que se passava em Faro, julgou a propósito dirigir-se a Olhaõ, para se reunir com o corpo do commando do Major Mello, e reunidos que foraõ na dita Villa o Regimento de Milícias de Lagos, e o 2.º Batalhão d'Infanteria N.° 2, e muitos paizanos armados, que de Faro se reunirão, marcharão sobre esta cidade na madrugada do dia 28, commandados por Mendonça, e por Mello.

O Regimento N.º 2, d'Artilheria, e os servis todos amotinados, sabendo as intenções d'aquelles corpos, se apoderarão immediatamente dos paioes, e cazas de arrecadação ; e por mais esforços, que alguns officiaes fizeraõ, para desvia-los de semelhante tentativa, tudo foi baldado ; chegando a sua fúria e insubordinação a quererem assassinar o capitão Duarte Daniel Pereira do Amaral, que pôde escapar-se, e reunir-se em Olhaõ com o Escrivão da Camera de Faro, expondo os mesmos aos Commandantes da força armada o estado horroroso d'aquella Cidade. Naõ obstante isto, o referidos chefes julgarão do seu dever naõ desistir de taõ nobre empreza, e apezar que o dito Regimento d'Artilheria tinha assestado a artilheria em todos os pontos importantes, cobrindo principalmente as alturas, que dominavâo a estiada d'olhao, com tudo os corpos combinados, não esperando encontrar t5o grande resistência, ainda que lhes faltava a pólvora necessária, e até pederneiras (o que fora motivado pela revolta de Tavira, e Faro) assim mesmo chegarão a pouca distancia d'esta Cidade pelas 4 horas da madrugada, do dia 28.

Foi então que na estrada denominada das Lavadeiras começou a vanguarda a sofrer um vivo fogo d'artilheria, e mosqueteria dirigido pelo mesmo 2.° Regimento, e paizanos armados. Travou-se um vigoroso choque, e tiroteo de parte, a parte, tendo os inimigos a vantagem do logar, e a superioridade das duas armas, alem da muita pólvora, e munições de que se haviâo apoderado. Durou o combate por espaço de três horas : as tropas fidelissimas forão obrigadas a ceder, e a tocar a retirada, por não lhes restar um só cartuxo. Foi n'este momento que entrou a dissolução, e discorsuamento nas fileiras. Os Soldados começarão a debandada, e a muito custo dos oficiaes poderão fazer uma retirada em forma até Olhão.

Vendo-se os officiaes, e todos os bons Portuguezes, que havião concorrido para a sustentação da legitimidade, distituidos de todo o recurso, formarão o projecto de se retirarem para Beja, atravessando a serra de S. Braz, plano a que adheriaõ todos os que se achavão em circunstancias de o abraçar : por que muitos não tinhão cavallos, ou não podião contar com elles, pelo desfalecimento que havião sofrido, restando- lhes unicamente, para se evadirem ao perigo, o recurso de se occultarem.

Os amotinadores de Faro, conhecendo a retirada, expedirão sobre os infelizes alguns bandos de malvados, havendo o capitão-mor, Jozé Bernardo da Gama Mascaranhas de Figueiredo, com antecipação passado as mais terminantes ordens ás Aldeãs, para perseguirem os fugitivos, com tal resultado que os prenderão, conduzindo-os a Faro na tarde do mesmo dia 28, pelas 7 horas, aonde forão recebidos pelos preversos com fogos de alegria. N'esta occasiaõ foi assassinado, e feito em pedaços com a maior crueldade o desventurado Major Chateauneuf, sendo os culpados d'esta morte os infames Jaques Felipe Landrecet, e o Capitão Luiz Guilherme Coelho, que aproximando-se do Major o principiarão a arguir, perante a multidão, do seu procedimento, excitando assim estes dois monstros os malvados para o assassínio, e foraõ os únicos officiaes, que tomarão sobre si o dirigir o Regimento, sendo estes os commandantes no fogo contra as tropas fieis. Escaparão n'esta occasiâo felismente á morte o Capitão Amaral, e o Major Caldeira. O Coronel Bivar escapou afortunadamente, passando. d'Olhão para bordo da escuna Nimfa, que se achava junto da barra. O Commandante d'esta embarcação o segundo Tenente da Armada Real, Francisco Xavier Auffdiener, havendo se conservado junto a Faro, se retirou d'esta posição, por ser avisado pelo Governador da Praça, António Pedro Lecor, que do Castello e pertendia fazer fogo sobre a Escuna, dando-se por motivo d'este procedimento agressivo o ter elle commandante dado protecção a seu bordo a muitos coustitucionaes. No meio d' esta crise, resolveo recolher-se ao Porto de Gibraltar, por que a Escuna não perrnitia outra viagem pelo seu estado de ruina; e com effeito realisando o seu projecto chegou a este porto no dia 7 de Junho do corrente anno trazendo a seu bordo alem do seu immediato, o Segundo Tenente da Armada Real, António Herculano Rodrigues, o Commandante do Cahique de Guera Inveja, Hermano Bastos de Azevedo, segundo Tenente da mesma Armada Real, o Tenente Coronel, graduado em Coronel do Regimento de Milicias de Lagos, Luiz Garcia de Bivar, António Nicolão Sabbo, João Pedro Lecor Ruiz [Buiz, referindo-se a Buys], aos quaes deu um generoso acolhimento, fugindo assim aos tristes males, que os ameaçavão no meio da sua disgraçada Pátria.

Gibraltar 29 d'Agosto de 1828.
ANTÓNIO NICOLAO SABBO.