30 de junho de 2017

Onde esteve Lecor entre 21 e 23 de Novembro de 1807, nas suas próprias palavras


Na ocasião na invasão hispano-francesa de Novembro de 1807, que Junot efectuou pela fronteira da Beira Baixa, o papel exato de Carlos Frederico Lecor nunca é devidamente aferido na historiografia. Sabe-se apenas que Lecor, em serviço no Alentejo, topou os franceses e cavalgou para Lisboa, sendo uma das pessoas que avisou a corte que os franceses já estavam em Portugal, aproximando-se sobre Lisboa. No processo terá mandado destruir a ponte de barcas sobre o rio Zêzere, facto quer envolvido num nevoeiro dos boatos.

Já muito escrevi sobre o assunto, analisando obras contemporâneas, as memórias de D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto, então com 5 anos de idade; os livros escritos por Acúrsio das Neves (que, 2 anos depois, nega-se a falar do episódio, por haver muitas contradições) e Maximilien Foy, que mostra a perspetiva do inimigo e o atraso que sofreu para atravessar o Zêzere.

Por último li a Memória Justificativa do Marquês de Alorna, publicada anonimamente em 1823, que fornece um papel a Alorna de instigador às ações de Lecor, seu então subordinado.

Agora, encontrei finalmente a fonte primária em que Lecor descreve as suas ações nesses fatídicos dias e onde ficam plenamente explicado o papel do marquês de Alorna, a questão da ponte de barcas do Zêzere e o que aconteceu de facto. A carta é de Lecor e não tem sem destinatário explícito, mas parece ser ser dirigida a D. António Araújo de Azevedo, então ministro da Guerra.

Antes de apresentar a transcrição, apresento o primeiro parágrafo da carta do marquês de Alorna a António Araújo de Azevedo, datada de 23 de Novembro de 1807 e que informa sobre o que Alorna sabia das ações de Lecor à altura. Ambas as cartas estão no mesmo documento arquivístico, associadas pelo tema:


"Carlos Frederico Lecor, que devia hir de Montalvão a este quartel, escreveme de Villa Velha huma carta em lapes, dizendo-me que por ter visto francezes na dita Villa Velha, se rezolvia a hir a Lisboa dar parte. V S.ª lá saberá se a rezolução deste oficial foi boa, e se o foi devese inteiramente a elle, porque a tomou sobre si."

Agora, a carta escrita por Lecor, relatando as suas ações entre o dia 21 e 23 de Novembro:
Hindo a Alcantara por ordem do meu General a entregar huã carta de V. S.ª a Mr Herman [François-Antoine Herman, Cônsul de França em Lisboa desde 1806, que entretanto se havia retirado] encontrei perto de Villa Velha 
[21.11.1807 – 1600H]/ antes das quatro oras da tarde do dia 21 do corrente mez hum almocreve d’Alpalhão por nome Jose Fez [Fernandes] q me deo a noticia de ter entrado hua coluna de sinco mil homens de Tropa Franceza em Castello Branco as dez oras da noite do dia 20 q não fazião mal e q dizião q nos vinhão ajudar contra os Inglezes. Apresei a marcha para hir certificar-me da noticia, e chegando a Villa Velha não encontrei maior clareza do //que tinha espalhado o mesmo almocreve, e tratando de fazer aprontar huma cavalgadura para hir reconhecer a Tropa a nociado/a não me foi percizo sahir daquele ponto 
[21.11.1807 – 1630H]/por quanto às quatro oras e meia avistei hum corpo de Tropa Ligeira da força de 200 homens pouco mais ou menos (fardados de Branco) q se deregia para a mesma v.ª pela estrada de Castelo Branco. Rezolvi q não devia hir para diante e q o mais importante era vir dar parte a V. S.ª para evitar que V. A. R. fosse surpreendido. Passei // a Barca para a parte do sul recomendando ao Escrivão da mesma V.ª q me participasse q tropa era, [21.11.1807 – 2000H]o que fez às 8 oras da noite dizendo-me que erão Francezes. Não tendo mais q avreguar esperei q foçe dia para partir n’hum barco q devia largar. 
[22.11.1807 – 0630H]As seis oras e meia do dia 22 se puzerão os Francezes em marcha tomando a estrada de Abrantes não tendo feito cazo da Barca de V.ª Velha q eu por precaução mandei ficar da parte do sul com recomendação q fosse destruida.
Chegando Abrantes escrevi ao Capp.m Mor e a Diogo Joze de Bivar participando-lhes a entrada dos Francezes e q deregião // à quella villa e q achava a propozito q elles se prestassem de comum acordo com o juiz de Fora para fazerem deser o Tejo a todas as embarcações e Barcas da ponte mandando impossibilitar a Ponte de Punhete para demorar a Tropa Franceza na passage do Zezer e partindo imediattamente [23.11.1807 – 0800H]/cheguei a esta corte as 8 horas do dia 23.


Fonte
"OFÍCIO DO MARQUÊS DE ALORNA PARA ANTÓNIO DE ARAÚJO DE AZEVEDO", Arquivo Distrital de Braga - Coleção Linhares, PT/UM-ADB/FAM/FAA-AAA/E/03965 [ver online]

Outras postagens sobre o assunto
Fontes: A Encruzilhada da Memória (Novembro de 1807)

A Lenda da Ponte sobre o Zêzere

28 de junho de 2017

Apontamentos acerca de evento: Primeira Invasão




PRIMEIRA INVASÃO
ANTECEDENTES

19.2.1806 – Brinco do Alto da Aboboreira.
10.3.1806 – relatório do Brinco do Alto da Aboboreira, perto de Vila Viçosa.
Finais de fevereiro?
1.4.1806 – Lecor está ainda em Belém (na verdade Ajuda, Quartel da Guarda do Corpo, atual Lanceiros 2) a tomar conta da LTL enquanto Von Wiederhold não toma posse.

17.10.1807 – [Franceses, a azul, Corpo de Observação da Gironda] Recebe ordens para entrar em Espanha.
18.10.1807 – Passagem do Bidassoa (?)

9.10.1807 – Carta de Alorna a António de Araujo de Azevedo, dando conta da passagem dos embaixadores francês e espanhol e sua saída do reino. Cartas particulares de Madrid e San Sebastian indicam que se aprontam mantimentos para a passagem de 30 mil franceses. Alorna desconsidera as informações como ainda pouco fidedignas (‘De longe e para longe’). Sem data, a primeira divisão francesa já teria passado por Olite (?) em Navarra.

Desde o início de novembro que Alorna tinha ordens para observar os franceses em Alcântara. (KENNETH LIGHT)

Th = THIEBAULT

Faz sentido, pois a raia de Castelo Branco – Alcantara estava entre dois governos de armas, o da Beira, a que pertencia em termos territoriais, com o seu comando no eixo Viseu – Almeida, e o do Alentejo, em Vila Viçosa-Elvas. A maior proximidade, assim como a ponte de barcas em Vila Velha faziam com que o governador d’armas do Alentejo fosse o comando mais perto, capaz de projetar espias sobre a estrada de Castelo Branco a Abrantes.

12.11 – Saiem de Salamanca para Alcantara, em 5 dias. Junot chega a Alcantara dois dias antes. (15nov ?)

14.11 – Aviso da Secretaria a, pelo menos, o Governador interino da Beira.

17.11 – informados, em Alcantara, que em 48 horas entrarão em Portugal.

18.11 (tarde) – Um soldado do RegMil de Castelo Branco avista tropas espanholas em Zebreira, preparando quartéis para tropas francesas.

19.11 – tropas ligeiras entram em Segura.
19.11 – (1600h) Cor. Joaquim Rebelo de Trigueiros Martel, comandante do RegMil de Castelo Branco, escreve da Idanha a Nova, para o Governador d’Armas interino da Beira, Florêncio José Correia de Melo.

20.11 – Entram a 1.ª e 2.ª Divisões de Infantaria + Carafa
ENTRAM OS PRIMEIROS QUANDO?
20.11 – 2200h. Tropas francesas (5000 homens) entram em Castelo Branco.
O resto do exército vaiou o Erges, nos dias seguintes, junto a Salvaterra do Extremo
Castelo Branco. Acúrsio das Neves fala de Segura, mas pelo que deixa entender, todo o Corpo por lá terá passado, não tendo menção de Salvaterra, mas apenas que estariam muito atrasados e em grupos isolados.
20.11 – Alorna refere que Bocaciari lhe havia informado, desde Marvão, que a vanguarda francesa que tinha chegado a Alcântara, se havia extendido a Valença.

21.11 – 1600h. Lecor em Vila Velha ouve o almocreve José Fez (Fernandes?) (orig. Alpalhão) que diz que os franceses entraram em Castelo Branco às 8 da noite. “q não fazião mal e q dizião q nos vinhão ajudar contra os Inglezes”. Lecor ia de Montalvão para Vila Viçosa, em diligência (carta a Mr. Herman, em Alcantara; Alorna diz que Lecor que devia hir de Montalvão a este quartel).
21.11 – 1630h. Lecor encontra logo após sair de Vila Velha (“não me foi percizo sahir daquele ponto”) 200 tropas ligeiras, fardadas de branco. Lecor decide nesse momento que não vale a pena ir além e que devia avisar o Principe Regente: “para evitar que V. A. R. fosse surpreendido”. Foi depois para a margem sul do rio Tejo pela barca de Vila Velha.
21.11 – 2000h. O escrivão de Vila Velha confirma-lhe que as tropas eram francesas. Ficou à espera do próximo barco que largasse.

Rezolvi q não devia hir para diante e q o mais importante era vir dar parte a V. S.ª para evitar que V. A. R. fosse surpreendido. Passei // a Barca para a parte do sul recomendando ao Escrivão da mesma V.ª q me participasse q tropa era, o que fez às 8 oras da noite dizendo-me que erão Francezes. Não tendo mais q avreguar esperei q foçe dia para partir n’hum barco q devia largar.”

21.11 - Envia nota a lápis a Alorna, informando da sua decisão de ir a Lisboa. Lecor “escreveme de Villa Velha huma carta em lapes, dizendo-me que por ter visto francezes na dita Villa Velha, se rezolvia a hir a Lisboa dar parte.”

V S.ª lá saberá se a rezolução deste oficial foi boa, e se o foi devese inteiramente a elle, porque a tomou sobre si.” (Alorna, 23.11)

Alorna está cético de que a invasão já tenha começado. Fala do histerismo e pânico do povo. A comunicação de Lecor, “a lapes”, a 21, é que começa a criar alguma cautela a Alorna, que promete enviar gente a Alcantara, Valença de Alcantara e a Vila Velha.

22.11 – Às 0630h da manhã, os franceses puseram-se em marcha pela estrada de Abrantes, “não tendo feito cazo da Barca de V.ª Velha q eu por precaução mandei ficar da parte do sul com recomendação q fosse destruida”. Lecor passa o Tejo para norte de dia, no primeiro barco.


Punhete (hoje, Constância)


22.11 – Lecor chega a Abrantes e avisa as autoridades locais, recomendando-lhes que descessem os barcos todos ao rio e impossibilitassem a ponte de barcas de forma a retardar o invasor.

Fez desviar os barcos do Zêzere, o que retardou a marcha do inimigo’ – António de Araújo

23.11 – 0800h. Lecor chega a Lisboa. (demora cerca de 24 horas, parando em Abrantes). Apesar de residir em Mafra, o PR vinha despachar frequentemente ao Palácio da Ajuda. Na verdade, foi a casa do Secretário de Estado dos Negócios da Guerra, António Araújo de Azevedo.
23.11 – Serão. Guarda avançada entra em Abrantes

24.11 – Franceses chegam a Abrantes. Guarda avançada chega na noite de 23. Ac, 1999: Vanguarda entra em Abrantes às 1500, do dia 23.
24.11 – Junot entra em Abrantes de manhã.
24.11 – O Governador d’Armas interino da Beira escreve ao Secretário D. António de Araújo. Sabe da carta do coronel de Milícias de Castelo Branco às 15 horas. A carta demorou 4 dias a ir de Idanha a Nova a Viseu. Deve ter demorado mais ainda a chegar a Lisboa, decerto já a corte estaria embarcada.
24.11. – última reunião do Conselho de Estado antes do embarque.
24.11 – Ajuda. “Mr Menil entrou como parlamentar em Lisboa no dia 24 de novembro, e entregou seus despachos a Mr. De Araújo no mesmo momento em que S.A.R. recebia de tres pessoas differentes, e principalmente do general Lecor, a noticia de que a vanguarda do exercito Francez já estava em Abrantes, isto he, na distancia de vinte legoas de Lisboa.
Convocou-se imediatamente um conselho de Estado e S.A.R. decidio-se a embarcar para o Brazil pelos votos unanimes de todos os membros do conselho.”
pp.193-194: “As Quatro Coincidências de Datas” in: O Campeão Portuguez 1.9.1819 (tradução de um folheto impresso em Paris, 1819)


26.11 – Vanguarda avança para Punhete.
Santarém, 26.11.1807 – Em Santarém, foi para a Golegã. Os franceses estão em Punhete. Escreveu uma carta de Santarém (um dos correios – o primeiro?). Não tinha verificado ainda a verdadeira posição dos franceses, o que pretende fazer na Golegã.
26.11 – Família Real em Queluz antes, D. João vai para lá.

TRAVESSIA FRANCESA DO ZEZERE

27.11 – Passam o Zêzere. Encontro de Junot com José de Oliveira Barreto (que escreve carta em Golegã indicando que se encontraria com Junot a 26, em Punhete).
Ac204 – Junot dormiu na Golegã.

The bridge could not be completed before one half of the army had reached the opposite bank”.

Cartaxo, 27.11.1807 – franceses em Punhete, Campos da Golegã alagados. Não chegam a Santarém antes de 28:

Illmo. e Exmo. Senhor
Depois q tive ontem a honra de escrever a V. Ex.ª de Sattarem [sic], marchei para a Golegam a certificarme da verdadeira pozição do Exerçito Francez, e ali vim no conheçimento que ainda se achavam em Punhete: assim não he provavel que possão chegar a Sattarem antes de amanhãa, acresendo o embaraço q lhe cauzara para a sua marcha o estado quase inpraticavel dos campos da Golegam. He quanto por ora se me offresse q possa participar a V. Ex.ª,
Ds Gde a V. Ex.ª. Cartacho 27 de Novembro 1807
Carlos Frederico Lecor”

27.11 – A família real começa a embarcar ao princípio da tarde. Belém. Sai de Queluz ao meio dia, chegam ao Largo de Belém.
Hum rigo temporal cerrava a barra (Ac, 177) – nada sai
Nas praias de Belém, havia ainda pouca gente quando chegou a primeira carruagem da Casa Real, dado que se ignorava em Lisboa a hora da partida. Lisboetas de todos os sexos e idades, tristes e consternados, aglomeravam-se mais e mais, para verem algo que nunca pensariam antes ser possível: o Príncipe Regente, a Rainha, toda a família real, embarcar, partir do reino em exílio.

ACURSIO DAS NEVES 175-176: “Em Quéluz toda a manhã [D. Carlota Joaquina] tinha sido incansável em arranjar a família, e dar todas as providencias, que as circunstancias exigião: sobre o caes de Belem estava ella mesmo fazendo embarcar as criadas, e mais pessoas da comitiva, segundo a ordem, que lhes destinava, com uma presença de espírito inimitavel”

28.11 – Junot jantou em Santarém, na casa do Capitão Mor de Aviz. Previsão de Lecor do dia 27 certa. Deu molho... (ver Acúrcio)
28.11 – Hum rigo temporal cerrava a barra (Ac, 177) – nada sai


28/29.11 – Junot no Cartaxo. À 1 da manhã recebe a notícia que D. João havia embarcado.

29.11 - Parte a esquadra. Amanhecer, tempo sereno e hum vento favorável.
29.11 – Chegam a Sacavém às 20 ou 21. (Ac:206)
30.11 – Entram em Lisboa (4 batalhões). 9 horas portas de Lisboa.

Benfica - 8-10 dias que não se despia [30NOV/1DEZ] Fronteira

28 ou 29.11 – Lecor volta a Lisboa com o quarto correio. Ao chegar, ou assiste ou sabe da partida (António de Araújo). Vai a Benfica (ceia) e depois atravessa, na mesma noite, o Tejo numa barca e retorna a Vila Viçosa. No alforge, Lecor leva ordens do Príncipe Regente para que receba os franceses e espanhois como aliados, que não lhes fizesse guerra e que lhes abrisse as portas das praças.. [cit do que é um soldado]

Sei que Lecor só tem tempo de visitar brevemente o Palácio de Benfica e que retornou logo a Vila Viçosa.


Fontes

- ACURSIO DAS NEVES, José, História Geral da invasão dos Francezes em Portugal e da Restauração deste Reino (5 v.), Lisboa, Oficina de Simão Thadeo  Ferreira, 1810

- BARRETO, José Trazimundo Mascarenhas, Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926.;