22 de dezembro de 2017

'Austerlitz em Vila Viçosa': O Brinco do Monte da Aboboreira (19 de fevereiro de 1806)



Em 19 de Fevereiro de 1806, à vista do chafariz da Atalaia, onde hoje em dia se encontram os limites dos distritos de Évora e Portalegre, levou-se a cabo o Brinco do Monte da Aboboreira, manobras militares na presença do príncipe regente D. João, simulando a batalha de Austerlitz, grande vitória de Napoleão sobre os russos e os austríacos, combatida a 3 de Dezembro de 1805.

Participaram os seis regimentos de Infantaria da província, assim como os seus três regimentos de Cavalaria e a Artilharia de Estremoz, e tudo aconteceu num só dia, retornando as tropas aos seus quartéis acabada a revista final.
“Junto à Asseca ha um monte que lhe chamão Castellos Velhos [Castelinho] he aonde se postou a peça que deu um tiro quando se avistou El-Rei o Sr. D. João 6.º que vinha de V.ª Viçosa a assistir ao brinco, e tambem (ver a) tropa formar e entrar nos seus lugares, aonde estava um passadiço [he a ponte de madeira] para mostrar uma passagem e ataque das tropas que passárão na Catalunha”. Elvas, 22.9.1863 (Chaby)
Príncipe Regente D. João, 1806 (Domingos Sequeira)

No monte de Castelinho, ou Castelo Velho, disparou-se uma peça ao se avistar S.A.R. o Príncipe Regente que vinha de Vila Viçosa para assistir ao Brinco. Nesse monte esperava-o um barracão. Lá dentro, sobre a mesa, o mapa do terreno e o plano do brinco.
“O Principe e sua esposa foram n’um dos coches do paço, seguidos da corte, e com ella o Marquez de Ternay. O Príncipe trajava farda encarnada bordada a ouro; a Princeza também d’encarnado.[...] A pouca distância do monte de Abebreira apearam-se suas Altezas, e cavalgaram dois formosos cavallos brancos e dirigiram-se ao dito monte, e d’alli ao do Castello-velho.Chegando aqui deu-lhe salva toda a artilharia.” (Almada, 1862) 

Começa o Brinco!
O Marquês de Alorna, que havia idealizado o Brinco, mandou dar sinal para começar a batalha. 
“O Marquez d’Alorna dirigiu as manobras, acompanhado dos ajudantes d’ordens Lecor e Carché [possivelmente, João Tomás Bocaciari], tendo por clarim d’ordens um preto vestido com o uniforme da Legião.” (Almada, 1862)
Na parte ocidental do campo, a mais próxima de suas Altezas Reais, que assistiam do alto, iniciou-se a ação com uma companhia de caçadores do 1.º Regimento de Infantaria de Elvas reconhecendo o campo do flanco direito, encontrando-se com a companhia de caçadores do 1.º Regimento de Infantaria de Olivença, ou de Mestral. 
“Começou a acção sahindo os caçadores do Regimento do flanco esquerdo D [1.º de Elvas] reconhecer o campo do flanco direito do 1.ª Regimento A [1.º de Olivença, ou Mestral] encontrárão-se com os do ditto Regimento que foram por estes repelidos [...]” (Wiederhold)
A cavalaria da divisão do Sul, 2 esquadrões de Cavalaria d’Olivença, carrega para desembaraçar os caçadores, tendo a imediata resposta dos 2 esquadrões de cavalaria d’Elvas, da divisão do Norte. 

Deu-se então combate e, dado um sinal, todos se retiraram, começando então as duas linhas a fazer fogo; do Norte, sem ordem, e a do Sul, por quartas partes de pelotão. 





Ponte sobre a Ribeira de Mures
O Brigadeiro Barão de Wierderhold (Bernardino Guilherme Held Wiederhold, 1753-1810), que nos legou a sua descrição do brinco duas semanas após este ter tido lugar (ler em baixo), refere que “como o fogo era muito vivo por causa do demasiado fumo”, não era possível ver nada. 
Quando o fumo dissipou, estava em marcha a passagem da ponte de madeira expressamente construída sobre a ribeira de Mures, para este Brinco.
q[uan]do extincto vio-se a segunda linha [divisão do Sul] em retirada fasendo três columnas para passarem a ponte [...]. Passou a columna do centro com 6 homens de frente e as outras duas por quartos a direita e a esquerda e logo que passaram a desfiladeiro começaram [a] metter em batalha pela Vanguarda [Wiederhold]
A passagem da ribeira de Mures, pela ponte e por vaus laterais, fez-se com tal calor que um oficial de artilharia de Estremoz se feriu com a espada, tal era a sua precipitação, informando-nos os Annaes de Elvas que esse facto teve influência na substituição de espadas direitas por curvas.
A peleja simulada “inflamou de tal sorte os pelajadores que muitos chegarão a carregar com pequenas pedras as Espingardas” [Annaes]
Depois das duas divisões terem passado a ponte, “uma vencida e outra vencedora”, foram-se postar os regimentos em linha  no campo a sul da ribeira e desfilaram perante o Príncipe Regente.  Wiederhold refere que não houve tempo para a recriação da segunda parte da batalha de Austerlitz, em que a segunda linha (do Sul) retoma a ponte.

Num cabeço junto à primeira linha, que formou junto à ponte, estava a choça de Napoleão. Depois de terem passado por sua Alteza Real Príncipe D. João, as tropas recolheram-se aos seus quartéis. 

Croqui do brinco do Alto da Abororeira (Wiederhold, 12.2.1806)

Algumas semanas depois, o Barão de Wiederhold, escreve um memorial do Brinco que acompanha o cróqui em cima.
“Postárão-se os seis regimentos em linha de Batalha como as figuras da 1.ª posição o mostrão. Começou a acção sahindo os caçadores do Regimento do flanco esquerdo D reconhecer o campo do flanco direito do 1.ª Regimento A encontrárão-se com os do ditto Regimento que foram por estes repelidos, sahiram socorrer aquelles os dous esquadrões de Cavalaria G pelos flancos do Regimento E e encontrarão-se com estes; viérão os dous esquadrões G H travou-se o combate athé certo signal ou ordem nos quatro esquadrões e as duas companhias de Caçadores que retiraram. Começárão as duas linhas a fazer fogo, a primeira linha [Divisão do Norte] sem ordem e a segunda [Divisão do Sul] por quartas partes de pelotões; como o fogo era muito vivo por causa do demasiado fumo ignoro o que se praticou, q[uan]do extincto vio-se a segunda linha em retirada fasendo três columnas para passarem a ponte ao pé da letra G. Passou a columna do centro com 6 homens de frente e as outras duas por quartos a direita e a esquerda e logo que passaram a desfiladeiro começaram [a] metter em batalha pela Vanguarda a primeira linha na retirada da segunda apareceo tendo a sua direita feito um oitavo à esquerda, de sorte que a direita ficou cobrindo o seu flanco esquerdo; passou a ponte vencido sempre fazendo fogo. A Artilheria trabalhou conforme o permettia a occasião, depois d’as duas linhas terem passado a ponte uma vencida e outra vencedora, foram no segundo campo postados os Regimentos em linha de Batalha. S. Altª R.al estava entre o flanco esquerdo da primeira linha e o direito da segunda. Esta começou a fazer quartos por pelotões a esquerda para passar pela frente do R.al S.nr e a primeira linha apoz esta por quarto à direita e a Artilheria na posição em que esta foi também fazendo os seus quartos nos lugares competentes, e depois de terem passado pela frente de S. A. R.al recolherão-se as tropas a quarteis. Em um cabeço junto à primeira linha estava a choça de Napoleão. O tempo não deo lugar a vereficar-se o que succedeo na Batalha de Austerlitz na tomada da ponte pela segunda linha vencida. B. de W (…), 10 de março” 
Fonte: AHM 3-05-04-08-24

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Ordem de Batalha do Brinco do Monte da Aboboreira

1.ª LINHA (OU DIVISÃO DO NORTE)
Coronel António José de Miranda Henriques
- (A) 1.º Regimento de Infantaria de Olivença, ou de Mestral [Inf 3]
- (B) Regimento de Infantaria de Campo Maior [Inf 20]
- (C) 2.º Regimento de Infantaria de Olivença [Inf 15]
- (H) Regimento de Cavalaria de Elvas [Cav 8] – 2 esquadrões
- (J) Regimento de Cavalaria de Évora [Cav 6] – 2 esquadrões
- (L) Regimento de Artilharia de Estremoz [Art 3] – 1 bataria

2.ª LINHA (OU DIVISÃO DO SUL)
Coronel José Carcome Lobo
- (D) 1.º Regimento de Infantaria de Elvas, ou de Bastos [Inf 5]
- (E) Regimento de Infantaria de Serpa [Inf 22]
- (F) 2.º Regimento de Infantaria de Elvas, ou de Mexia [Inf 17]
- (G) Regimento de Cavalaria de Olivença [Cav 6] – 2 esquadrões
- (L) Regimento de Artilharia de Estremoz [Art 3] – 1 bataria


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Pesquisas de Cláudio de Chaby em 1863

57 anos depois destes acontecimentos, Cláudio Bernardo Pereira de Chaby (1818-1905), pesquisando os eventos, encontrou um veterano de artilharia que lhe facultou informação de memória:
“Só pude descobrir hum velho no B.am de Veteranos que me disse informações, do que pretende saber, e forão por elle dadas com tanta prontidão e segurança que as devo julgar exactas, elle sendo praça d’Art.ª d’Elvas assestio a tal função”. (carta de Chaby, 12.9.1863)
O veterano confirmou a Chaby que o 3.º marquês de Alorna foi o comandante, assim como confirma o nome dos comandantes das 2 linhas em confronto. Não se lembra especificamente se a Cavalaria de Évora assistiu, a que comentamos que de facto participou com dois esquadrões, e, por fim, que a 'brincadeira' teve lugar 4.ª feira de cinzas.

Com base nesta sua visita ao local, Cláudio de Chaby recupera alguns dos elementos do brinco, com a referência que um dos maiores interesses era ver em ação os regimentos que estiveram na Campanha do Rossilhão e Catalunha, há uma década atrás:
“Junto à Asseca ja um monte que lhe chamão Castellos Velhos [Castelinho?] he aonde se postou a peça que deu um tiro quando se avistou El-Rei o Sr. D. João 6.º que vinha de V.ª Viçosa a assistir ao brinco, e tambem (ver a) tropa formar e entrar nos seus lugares, aonde estava um passadiço [he a ponte de madeira] para mostrar uma passagem e ataque das tropas que passárão na Catalunha”. (Carta de Chaby, Elvas, 22.9.1863)
De todos os regimentos de infantaria presentes neste dia, apenas o 1.º Regimento de Olivença, ou Mestral, combateu no Rossilhão. 


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BIBLIOGRAFIA

- ARQUIVO HISTÓRICO MILITAR.

- ALMADA, Victorino d', Elementos para um Dicionário de Geographia e Historia Portugueza. Concelho d'Elvas e extintos de Barbacena, Villa-Boim e Villa-Fernando (2 tomos), Elvas, Typ. Elvense, 1889;
- ESPANCA, Pe. Joaquim José da Rocha, Memórias de Vila Viçosa, ou Ensaio da História desta vila transtagana, corte da sereníssima Casa e Estado de Bragança, desde os tempos mais remotos até ao presente, segundo o que pode coligir seu autor (1862-1886); 
- MATTA, José Avelino da Silva e, Annaes de Elvas ou Apontamentos historicos Para a Topographia Elvense ou Breve Discripção Phisica, Politica, e Historica, Da Nobre e Sempre Leal Cidade de Elvas. Estremoz, 1859.