“O tempo na verdade era delicioso, e convidava a viajar; em huma bella manhã da Semana da Páscoa procurou-se o velho, e elle tinha abalado com os trastes. Com effeito teve a habilidade de transportar-se para Inglaterra, com quasi tudo o que lhe pertencia, em hum navio, que sahio licenciado por Junot.”
José Accursio das Neves, História Geral da invazão dos Francezes (1810), p. 222.
Assim partiu ‘à italiana’ o velho italiano Monsenhor Lorenzo Caleppi (1741-1817) da Lisboa ocupada de 1808, não sem antes escrever uma carta ao general Junot, agradecendo-lhe a simpatia, mas prometendo-lhe que “agitado pelos gritos da [sua] consciência” (1), deveria partir para o Brasil e cumprir o seu papel de Núncio Apostólico junto à corte legítima.
Após não ter conseguido embarcar na esquadra que levou os nossos melhores para o Brasil nos últimos dias de novembro de 1807, Monsenhor Caleppi ficou em Lisboa, único embaixador que o fez, e conspirou activamente com os ajudantes de ordens do Marquês de Alorna, o nosso Carlos Frederico Lecor e o major Bocaciari (de triste destino, a falar aqui em breve), para que todos fugissem para a esquadra inglesa nas costas portuguesas. Os três não conseguiram convencer Alorna, já preso aos franceses, não sem remorsos (outra história!), mas por alturas da Páscoa, em torno do dia 18 de Abril, lá tomaram o caminho do exílio, recusando o jugo revolucionário. Caleppi escusou-se por carta a Junot, que estava doente e não poderia ir a uma festa, mas nessa mesma noite, vestido de pescador lá ia ele ao seu destino.
Lorenzo Caleppi nasceu em Cervia (Ravenna, na costa adriática da Itália) em 29 de Abril de 1741, filho do Conde Nicola Caleppi e Luciana Salducci, e foi ordenado padre em 1772. Rapidamente, escalou a hierarquia do Vaticano, assumindo-se como um dos mais promissores diplomatas da Igreja. Em 22 de Fevereiro de 1797, esteve presente e assinou o Tratado de Tolentino [na foto ao lado, Caleppi é o segundo a contar da esquerda], com que a Igreja capitulou de vez perante o Directório Francês e Napoleão.
Segundo na comitiva do Vaticano na negociação e assinatura do Tratado de Tolentino, atrás do Cardeal Alessandro Mattei, o próprio Napoleão, tendo-o conhecido na Itália uma vez (provavelmente durante as negociações ou a assinatura do tratado), observou que “toda a arte do mais subtil xeique turco era mera simplicidade comparada com a astúcia de Caleppi” (2). Ao assinar, numa ocasião, um tratado com Murat, Caleppi colocou um par de óculos escuros verdes, para que não se visse o seu semblante. Para Laura Junot, isso mostra o homem.
Em 23 de Fevereiro de 1801, é eleito Arcebispo de Nisibi, sendo consagrado na catedral de Frascati. Nomeado Núncio para Lisboa nos finais desse mesmo ano, chega a Lisboa no dia 22 de Maio de 1802.
Em 1805, Laura Junot conhece-o em Lisboa, por ocasião do breve consulado do seu marido na Corte, e diz dele que “a sua astúcia combinada com a sua extensa e profunda informação, tornava a sua companhia extremamente interessante”, e que “fazia tudo [...] com bom gosto, sem qualquer indício de servilismo”. (3)
Monsenhor Caleppi, como um dos dois únicos embaixadores remanescentes em Lisboa (o outro era o da Rússia, e que se reúne à Corte no Rio, penso que em 1812, por via dos Estados Unidos), e por sua própria inclinação política, tudo fez junto de variadas altas instâncias da sociedade portuguesa, para que fugissem para o exílio, mas com poucos resultados, acaba por escapar ele próprio, deixando o seu próprio n.º 2 na Nunciatura, Vincenzo Macchi, futuro cardeal, para ser posteriormente expulso por terra até aos Pirinéus. Caleppi leva com ele, pouco tempo depois, pelo menos o nosso herói Carlos Frederico Lecor e José Tomás Bocaciari, os ajudantes de ordens de Alorna.
Na sua carta a Junot, jogando o mesmo jogo cortês do comandante da ocupação estrangeira, Caleppi despede-se de Junot, trocando-lhe as voltas, decerto com um sorriso enquanto a ditava:
“A negação dos passaportes, para poder embarcar-me, soffrida pelo espaço de quatro mezes, os incommodos, e tudo quanto tenho supportado neste intervallo, sem os poder conseguir, me tem muitas vezes feito recear, que alguma calumnia tenha enganado a V. Excelencia, [...] sobre a minha pertenção. [...] Por felicidade minha V. Excelencia nestes ultimos dias me fez o maior obséquio, certificando-me repetidas vezes pela sua honra, que nada, absolutamente nada, havia contra a minha pessoa, e que a negação dos passaportes, para o meu embarque, era sómente huma medida, não devendo a França (me dizia V. Excelencia) facilitar aos Embaixadores meios de transportar-se a hum paiz, com quem estava em guerra.” (4)
Lá se foi Caleppi, com certeza desenhando na mente a cara do grande Junot, após brilhante saída de cena. Essa mesma saída de cena é fortemente ovacionada no Rio de Janeiro, quando o Núncio lá chegou, assumindo o seu papel enquanto embaixador da Santa Sé, o primeiro do novo mundo.
Em 8 de Março de 1816, já com a guerra terminada na Europa, e uma prestes a decorrer no Rio da Prata (no comando, o nosso Carlos Frederico Lecor), Lorenzo Caleppi é criado Cardeal, embora nunca tenha recebido o solidéu vermelho. Dez meses depois, a 10 de Janeiro de 1817, um mês antes de Lecor conquistar Montevidéu, o Arcebispo de Nisibi falece com quase 76 anos de idade. Como sua última vontade, é sepultado no franciscano Convento de Santo Antônio [na foto], no Rio de Janeiro.
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(1) Carta de Lorenzo Caleppi a Junot, 18.4.1808, in: José Accursio das Neves, História Geral da invazão dos Francezes (1810), p. 222-227.
(2) Laura Junot (1832), Memoirs of the Duchess d’Abrantes, Vol. IV, London: Richard Bentlet, pp. 242-245 [minha tradução].
(3) Ibidem
(4) Carta de Lorenso Caleppi a Junot, 18.4.1808, op. cit.