13 de janeiro de 2016

Do nascimento e família



Vista da Rua das Trinas, Lisboa, à entrada 
da actual (então rua) do Pé de Ferro
Lecor


ORAÇÃO 
‘Deos Mestre das sciencias, que as escondestes aos grandes do mundo, 
e que as revelastes aos pequenos, fazei-nos a graça de que tomemos o estudo 
por penitencia, a fim que o que aprendermos seja sem erro, e sem vaidade.’
Luiz Pedro Lecor, Lição XL, das obrigações de hum menino Cristão. Educação de Meninos, 1746

Carlos Frederico Lecor, mais propriamente Carolus, como escrito no seu assento de batismo, nasce a 6 de Outubro do ano de 1764, na rua Pé de Ferro (hoje travessa), no bairro de Santos-o-Velho, na zona ocidental de Lisboa. A sua mãe é D. Quitéria Luísa Marina Krusse Lecor, 20 anos, de Vila Nova de Portimão. O pai é Luiz Pedro Lecor, de Paris, próximo dos quarenta anos de idade.

Nascida a paróquia de Santos-o-Velho da Praia ribeirinha, todas as suas casas e ruas descem sobre o rio Tejo; a paróquia não dista 50 passos de um lado ao outro. Em 1758, apenas seis anos antes de Carlos nascer, e três após o grande terremoto de 55, Santos-o-Velho tinha 1836 fogos, e 8403 pessoas de confissão, além de mais de mil, os hereges e não constados do rol de confissões. Este número era em 1758 já superior, apenas três anos após a catástrofe.

Carlos foi batizado nessa mesma igreja paroquial, catorze dias após o seu nascimento. O seu padrinho e também seu tio materno, Carlos Frederico Krusse, deu-lhe os nomes próprios. A sua tia, D. Vitória Berarda Marciana Krusse, de 19 anos, foi a madrinha.

Nos anos seguintes, ainda em Santos, nascem os irmãos de Carlos. João Pedro nasce dois anos depois, a 7 de Outubro de 1766, a pequena família agora residindo na rua São João da Matta, a um pequeníssimo quarteirão da rua Pé de Ferro. António Pedro, a 6 de Setembro de 1768, Jorge Frederico e Maria Leocádia Leonor, muito possivelmente em 1770 e 1772.

Carlos Frederico e os seus quatro irmãos  nascem numa família alargada de comerciantes e homens de negócios, de múltiplas origens europeias, como os Buys, de Hoorn, na Holanda, os Krusse, de Hamburgo, ou os Lecor, de Paris e Marselha. A própria natureza dos negócios destas famílias os fazia estar frequentemente nesses portos europeus, embora tivessem escolhido Portugal para assentar e criar família.

Os Krusse

Hamburgo (1)
A profícua prole de Nikolaus Krusse e D. Catarina Maria Buys, os avós maternos de Carlos, nasceu entre 1733 e 1750 em Portimão. Tiveram sete filhos. Nikolaus, ou Nicolao, era um negociante proveniente de Hamburgo que assenta raízes familiares em Portimão, casando-se com D. Catarina Maria.
Nikolaus passou primeiro por Pernambuco, nos anos 20 do século, no El Dorado brasileiro, onde era sócio de um Pedro Graaf, holandês, mas num processo iniciado em 1726, motivado por alguns comerciantes portugueses descontentes, foram ambos chamados a Lisboa. Ficou definido que em razão das nacionalidades e respetivas implicações diplomáticas, Pedro Graaf poderia ficar, mas já Nikolaus Krusse deveria abandonar a praça. Fê-lo, a contragosto, no início de 1730, montando loja em Portimão.
Tiveram nessa cidade algarvia em 1733 o seu primogénito, Carlos Frederico Krusse, tio-padrinho de Lecor, e mais seis filhos, incluíndo a mãe de Carlos, D. Quitéria Marina, em 1744, e a madrinha, D. Vitória Berarda, um ano depois.

Carlos Frederico Krusse assume o negócio de seu pai, desde que este falece, em 1758, em Santos-o-Velho. É bastante provável que a família tenha vindo para Lisboa, após o Terremoto de 1755 ter destruído boa parte de Portimão, assim como provocado estragos substanciais na maior parte das terras litorais do Algarve. A Igreja paroquial da Nossa Senhora da Conceição, no centro de Portimão – onde pelos menos seis  Krusse foram batizados, era no final de 1755, apenas ruínas.
Ainda assim, o Algarve manteve sempre a sua importância nos negócios da família, nomeadamente a exportação de alfarroba e alecrim para o Norte da Europa e o envio de trigo alentejano pelo Guadiana para Lisboa. Forma, pelo menos desde a década de 1770, a Costa, Krusse e Companhia, com Manuel José Gomes da Costa, importante negociante da praça de Faro. Esta sociedade, para lá da exportação de produtos algarvios, emprestava dinheiro, estabelecendo com força a identidade social de homens de negócio, que trabalham a grosso, e já longe do simples retalho. Carlos Frederico Krusse é também cônsul da Holanda em Faro.

Os Buys

Hoorn, Holanda
A avó materna de Carlos, D. Catarina Maria Buys Krusse, era filha de Jan Pieter Buys, holandês, e de D. Maria Teresa, espanhola  de Huelva (Guelba, dir-se-ia então), em Espanha.  Jan Pieter, grafado João Pedro nos documentos, veio da cidade holandesa de Hoorn (a norte de Amsterdão) para Portugal, assentando raízes em Faro, no reino do Algarve.
António Pedro Buys, irmão de D. Catarina e tio de Carlos, teve, com D. Teresa Maria cinco filhos, todos sensivelmente da mesma geração de Carlos, e que convivendo em Faro, partilharam as brincadeiras com os primos Lecor. João Pedro, primogénito e herdando o nome do avô, nasce em março de 1765, sendo apenas cinco meses mais novo que Carlos Frederico. Vitória Teresa nasce em 1769 e Germana Máxima Guilhermina em 1771.

O mais velho, João Pedro Buys, assume mais tarde os negócios da família, em 1794, após o falecimento do seu pai, constituindo sociedade com Carlos Frederico Krusse. Ambos eram donos de uma frota de caíques  que leva  trigo dos portos alentejanos do Guadiana para Lisboa. Ainda antes, em 1791, é cônsul de França no Algarve, facilitando a comunicação entre mercadores. João será também tenente-coronel do Regimento de Milícias de Faro. O seu compromisso com a sociedade farense é claro, não só pelo referido acima, mas pelas inúmeras ocasiões em que João é padrinho de batismo, tanto na Sé, como em S. Pedro. É ele que representa a Junta de Faro na revolta de 1808, juntos dos barcos ingleses, em virtude de ter bom domínio da língua inglesa.

(1) Aquarell "Prospekt der Kaiserlich Französischen Stadt Hamburg" von Johann Marcus David, 1811

10 comentários:

Moisés Gaudêncio disse...

Jorge, este post está muito bom. Permite ficar com uma ideia do ambiente que rodeava lecor. E sobre o pai?

Jorge Quinta-Nova disse...

Moisés, obrigado. O pai é que me está a travar a primeira parte da biografia, pois desde o nascimento dos filhos, ele não aparece em mais nenhuma fonte que eu tenha consultado. Não sei quando morre, se cedo, o que o lhe acontece. É um buraco enorme na minha pesquisa.
A mãe, D. Quitéria, sei que está viva em 1819 (n. 1744) pois há uma carta no AHU.

Moisés Gaudêncio disse...

Mais informação sobre o pai ajudaria a entender a juventude de Lecor, talvez a ida da familia para Faro e a opção militar de todos os irmãos. Mas isto decerto quevtodas estas possibilidades jà lhe ocorreram... Se bem percebi nunca detetou a presença de Lecor pai em Faro ?

Jorge Quinta-Nova disse...

Não. Aliás, após o casamento dele com D. Quitéria em 1761, não apanho mais nada diretamente dele, exceto os batismos dos filhos, o último dos quais em 1768 (que eu tenha verificado) e 1772 (provável data de nascimento do irmão mais novo). Nos livros paroquiais de Faro não aparece nunca, nem óbitos, nem batismos, nem casamentos. Nem mesmo encontrei nos livros notariais. Se tivesse que apostar diria que faleceu ou, no mínimo, sai totalmente da vida da esposa e filhos.

Jorge Quinta-Nova disse...

Confesso que tenho perseguido uma hipótese que é a do ambiente face a comerciantes estrangeiros ter mudado radicalmente quando o Marquês de Pombal sai do poder em 1777. Os governos de D. Maria penso que foram mais protetores dos comerciantes locais, e isso poderá ter levado a que os Krusse/Lecor se tenham visto obrigados a sair da Praça de Lisboa e a ir para Faro, onde já tinham relações com os Buys (que já lá estavam há mais de 20 anos).

Jorge Quinta-Nova disse...

Quanto à opção militar, há indícios. O tio-padrinho, CF Krusse, foi provedor de munição de boca do Minho e do Porto em 1762/63 e a família tinha vários contactos. O irmão João Pedro Lecor teve como padrinho um Capitão de Mar e Guerra, por exemplo. Em 1793, este mesmo João Pedro vê-se alçado diretamente de soldado a Sargento-cadete, apenas para que não fosse para o Roussilhão numa categoria abaixo dos dois irmãos, que estavam no Exército há já 4/5 anos. E isto por patrocínio direto do Conde de Vale de Reis, então governador dos Algarves.

Moisés Gaudêncio disse...

Jorge, sobre os comerciantes e industriais estrangeiros lembrei-me das memórias de Jacome Ratton.

Jorge Quinta-Nova disse...

Moisés, tenho esse, muito interessante, mas o Jacome Ratton estava a um nível superior. O La Nation Française a Lisbonne de 1669 a 1790, Entre Colbertisme et Liberalisme, do Jean-François Labourdette é que ajudou bastante, pois fala sobre a forma como os franceses se fixavam em Portugal (vinham com outras profissões, mas muitos abriam casas comerciais depois) e especificamente sobre um patrão do pai de Lecor, Barthélémy-Louis Trinité.

Jorge Quinta-Nova disse...

É verdade, no outro dia descobri que o tio-padrinho Carfos Frederico Krusse era dono de a casa onde está hoje a sede do Sport Faro e Benfica, no largo de Pé da Cruz. Tinha as traseiras para a rua do Bocage (antiga rua da cordoaria).

Unknown disse...

Estimado Jorge Quinta-Nova

Me interesa la actuación de la División de Voluntarios Reales en la campaña en la Banda Oriental contra Artigas.
Tengo una consulta. ¿Las compañías de atiradores de los batallones de Cazadores, tenían rifles Baker?
Desde ya gracias,

Mag. Juan C. Luzuriaga - Montevideo
luzuriaga50@gmail.com