Nas suas Reminiscências da Campanha de 1827, o coronel Anton Adolph Friedrich von Seweloh, do 27.º Batalhão de Caçadores, Alemães, refere-se a Carlos Frederico Lecor colocando-o num estatuto quasi divino. Não o faz com um propósito satírico, mas mostra a enorme reputação e influência do então já visconde da Laguna, não só nas Cisplatina, onde esteve quase 10 anos, como no Rio Grande.
Lecor era uma espécie de caudilho, já se tem escrito muito sobre isso; Era, mas com a diferença que servia o imperador do Brasil, e, antes, o rei de Portugal. Ao ver-se afastado do cargo de comandante em chefe do Exército do Sul, como nos conta Seweloh, Lecor afasta-se e não instiga ações políticas, o que o distingue bastante dos caudilhos republicanos da antiga América espanhola.
Daí por dois anos, finalmente o visconde da Laguna se reforma e fixa residência no Rio de Janeiro, após 37 anos de carreira militar, sendo promovido a Marechal do Exército. O capitão von Seweloh faz de Lecor uma excelente impressão, quiçá exagerada em momentos, mas que reflete sobre a popularidade de Lecor no Rio Grande que é notada noutras fontes.
O marquês de Barbacena recebeu o comando em chefe do exercito das mãos do visconde da Laguna [finais de 1826], sendo este, sem duvida, um dos mais dignos, mais talentosos, mais instruídos, mais distintos comandantes do Brasil; julgo até não dizer de mais, colocando-o pelo menos no primeiro lugar entre os generais brasileiros, porque na Europa ou em qualquer outra parte do mundo poderia exercer seu elevado cargo com distinção, gloria e louros. Em toda a minha vida não encontrei homem tão geralmente estimado e venerado, a quem tanto poupasse a inveja, o espírito de censura.
A província de Montevideu, por ele antes conquistada, o honrava como um pai venerando; a província do Rio Grande tinha nele uma confiança ilimitada; desde muito o esperava como um redentor; os homens ricos lhe entregavam seus cabedais e todos os dias lhe diziam que deles dispusesse como quisesse. Em poucos dias estavam centenas de carretas à sua disposição, e as tropas esfaimadas receberam dele em Santana [do Livramento] as primeiras provisões.
O exercito o endeusava; ele era o objecto de suas preces, o objecto de seus votos, desejos e esperanças; não e possível pintar fiel e claramente tudo, a não ser que falemos dele como de um Deus. Abalava-me a presença daquele tipo, tão raro e cheio de comoção: recordo-me daquele tempo em que vi os habitantes da província de S. Pedro [do Rio Grande] se afadigarem por demonstrar seu amor ilimitado para com o mais digno guerreiro do Brasil.
Já era um velho de 60 anos [62, mais concretamente]; tinha a nobre figura de um herói; em torno de sua bela cabeça, o céu colocara uma coroa de prata, como tão raras vezes é dada aos mortais; mas também não lhe faltava a energia nem a força; era um homem robusto, com a experiência e sabedoria de um ancião, o que é muito raro no Brasil, onde se vê muitos velhos de vigor juvenil e sem prudência alguma.
Tal era o homem de quem o marquês de Barbacena tirou o comando. A este ultimo general precederam boatos muito desfavoráveis, unânimes e do lodos os lados repetidos, sendo necessária toda a prudência do visconde da Laguna, que recusou inclinar-se para qualquer dos muitos partidos dispostos a defende-lo e talvez muito perigosos; mas o digno general, servindo lealmente a um governo que tanto o maltratou, e por duas vezes o humilhou aos olhos de todos, não quis resistir; preferiu empregar a persuasão, a bondade, a amizade, o rigor, para debelar tudo quanto pudesse ser nocivo aos interesses de seu Imperador.
Fonte
SEWELOH, A. A. F., “Reminiscências da Campanha de 1827 contra Buenos-Ayres”, Revista Trimestral do Instituto Historico, Geographico e Ethnographico do Brasil. Tomo XXXVII, Parte Primeira, Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1874. pp.399-462. Excerto adaptado e com ortografia modernizada. [LER]