P: Como se chamão aquelles, q trazem espada para o serviço do Estado?
R: Chamão-lhes gente de guerra, ou soldados.
Luiz Pedro Lecor, Lição XXX, das Leys Humanas. Educação de Meninos, 1746
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Faro, Novembro de 1793. |
Por esta altura, finais da década de 1780, uma mudança começava a
fazer-se notar na sociedade portuguesa, fruto das convulsões políticas
europeias, produto da onda de choque que foi a Revolução Americana, na década anterior.
É assim
que, em 1787, mais por causa dos piratas do Norte de África do que propriamente
da situação europeia, o Conde de Vale dos Reis, capitão-general dos Algarves,
escreve uma carta à rainha D. Maria pedindo a construção de quartéis para o
regimento de artilharia de Faro, ainda na sua maioria aboletado nas casas de
cidadãos, desde que fora formado em 1776. Se esta carta é escrita a 27 de
Novembro, logo a 1 de Dezembro, a vereação de Faro dá início a uma petição,
recolhendo as assinaturas de quem estava nas Casas da Câmara, e depois indo às
ruas chamar os que cidadãos que lá se achassem a assinar a importante petição.
Entre as várias assinaturas, temos Carlos Frederico Krusse, ao topo, e Carlos
Frederico Lecor e João Pedro Buys, mais para baixo.
O apelo do uniforme foi, porém, mais forte. O
desejo de ser mais na vida que um comerciante, viajar pelo império, conhecer a
India, o Brasil, Angola, ao invés de ficar preso a um escritório, contando
metal e fazendo balanços. O espírito da época, romântico, idealista, liberal, a tudo isso
encarreirava na alma do jovem Carlos e o inspirou a seguir a vida militar.
Em menino, ficara-lhe a memória do rio Tejo e
a vista da saída e chegada das naus. Em Faro, ao ir nadar à Ria, próximo ao Poço das Naus, o
espírito inquisitivo de Carlos o fazia ficar observando as peças de artilharia
de variados calibres armazenadas ali próximo, pondo à prática os cálculos
aprendidos com os seus professores. No bom tempo, muito frequente no Algarve,
as peças ficam cá fora, para que os artífices nelas pudessem trabalhar.
Regimento de Artilharia da Guarnição do
Algarve
No ambiente de pequena cidade litoral de
Faro, o regimento de Artilharia era uma absoluta novidade, tendo apenas sido
formado em 1774. Começou por ser constituído por três companhias que vieram,
desde logo, do extinto regimento de Artilharia de Lagos, a escassos 80
quilómetros de Faro. Depois vieram as restantes companhias do Porto e de outras
guarnições, assim como o seu primeiro comandante, Diogo Ferrier. Não havia, nem
nunca chegou a haver um quartel propriamente dito, mas edifícios alugados por
toda a cidade, onde se tinha o material, os oficiais e artilheiros.
Na volta para casa, passando pela Praça da
Rainha (Jardim Manuel Bívar, hoje), Carlos veria também com alguma frequência o
Regimento de Milícias de Faro, treinando a marcha, com a banda tocando,
marcando o passo. Com ele, os irmãos João, António, Jorge e o primo João Pedro,
todos aproximando-se ansiosamente da idade militar, de correr e conhecer mundo,
defender o império e a santa religião.
Os Sargentos Cadetes de Artilharia
Na cavalaria e infantaria, desde 1757 que se
aceitavam cadetes nos regimentos, tendo que fazer prova de nobreza. Na
artilharia, porém, não havia este sistema, até porque era muito raro ter nobres
portugueses a desejar servir nela. A artilharia, assim como a engenharia, era
uma arma técnica que só teve, aliás, direito a uniforme, em meados do século.
Apesar disso, o alvará de 16 de março de 1757, que criava os cadetes apenas
para a infantaria e cavalaria era usado, por analogia, pela artilharia, confirmado oficialmente em 1767. A única
diferença estava em que a artilharia não requeria prova de nobreza, mas,
geralmente, jovens com boa formação e de famílias burguesas de algum respeito e
envolvimento social, além do que estes cadetes tinham de estar nos números, ou quadros, das companhias.
Para a artilharia iam então muitos jovens
filhos da burguesia mercantil urbana e a pequena nobreza rural de Lisboa,
Porto, Faro e Estremoz, arautos castrenses do crescimento da classe média que
apenas desta forma poderia obter o oficialato militar, a patente d’el-Rei. O
seu percurso normal era assentar praça como soldado, e passar a cabo de
esquadra, furriel e, finalmente, a sargento. Estivessem então em que unidade
estivessem, pediam a passagem ao regimento de artilharia local e o
reconhecimento como cadetes; nas folhas hoje guardadas pelo Arquivo Histórico
Militar, aparecem designações como ‘sargento-cadete’ ou ‘cadete-sargento’,
indicando-nos também que era fundamentalmente um termo oficioso. Sendo
sargentos-cadetes, era apenas questão de esperar por uma vaga de 2.º tenente, o
primeiro posto da carreira de oficial de artilharia. Mesmo assim, em situação
de campanha, como no Roussilhão e Catalunha de 1794, cadetes chegaram a
comandar batarias, como veremos mais adiante.
Irmãos de Armas
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Oficial subalterno, 1793
Regimento de Artilharia do Algarve
(ilust.: Bill Younghusband) |
António Pedro e Jorge Frederico
Os dois irmãos mais novos, António Pedro, com 20 anos, e Jorge Frederico, com 18, assentam praça como voluntários e juram bandeiras primeiro, logo em 1788, no Regimento de Infantaria de Tavira, a trinta quilómetros de Faro. Com a sua educação, logo se vêem como sargentos-cadetes na artilharia de Faro, uma característica da artilharia portuguesa, não mais de um ano depois: Jorge a (10 de março de 1788), António a (10 de maio de 1788).
João Pedro
É já quando toda a França muda, mudando com
ela a Europa, que os dois irmãos mais velhos decidem se alistar. João Pedro
(1766-1844), nascido na rua de S. João da Matta, em Santos-o-Velho, foi
primeiro. João, ao contrário dos dois irmãos mais novos, assentou praça
diretamente em Faro, onde morava, no regimento de Artilharia do Algarve. Fê-lo
a dezembro de 1792 ou janeiro de 1793. Menos de quatro meses depois, embarcavam
os três para a Catalunha, apenas Carlos Frederico ficou, assentando praça de voluntário na Fortaleza da São João da Barra de Tavira, apenas um mês após os seus irmãos estarem já embarcados rumo à guerra.