ELOGIO AO MARECHAL DO EXÉRCITO CARLOS FREDERICO LECOR, VISCONDE DA LAGUNA E GRANDE DO IMPÉRIO
(Lido por Jorge Quinta-Nova, a 24 de Junho de 2019, na Sessão Académica da Delegação de Portugal – D. João VI da Federação de Academias de História Militar Terrestre do Brasil)
Boa tarde
Em 1936, por ocasião de uma sessão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro evocativa do primeiro centenário da morte do Visconde da Laguna, o académico baiano José Wanderley de Araújo Pinho, após uma brilhante exposição, e humildemente penitenciando-se pelo que considerou uma análise superficial da figura histórica, convocou os académicos do futuro a que, "mais felizes, com todos os documentos à mão", fizessem o que ele faria se pudesse à altura.
Em 1984, quase cinquenta anos depois, o general brasileiro Paulo de Queiroz Duarte, ainda que não com todos os documentos – na verdade, a quimera do historiador, o ideal impossível, respondeu em grande estilo a essa convocação, com os três volumes de Lecor e a Cisplatina, publicados pela Biblioteca do Exército, uma obra seminal na compreensão não só do marechal Lecor, mas da intervenção portuguesa de 1816 no Rio da Prata.
Hoje, humildemente aqui perante vós, espero poder também de forma digna, mas resoluta, responder ao apelo de há 83 anos, adicionando a minha contribuição, portuguesa e europeia, para o conhecimento da figura histórica daquele que é patrono da cadeira que humildemente ocupo, o marechal Carlos Frederico Lecor, Visconde da Laguna e Grande do Império do Brasil. Muito há que dizer, mas tendo em atenção a vossa paciência e o meu tempo, tentarei ser breve e conciso.
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Carlos Frederico Lecor nasceu a 6 de Outubro de 1764, em Santos-o-Velho, Lisboa, na rua do Pé de Ferro, onde a sua família então vivia. É o primeiro filho de Quitéria Luísa Marina Krusse e de Luiz Pedro Lecor, ambos provenientes de famílias mercantis recentemente imigradas em Portugal.
D. Quitéria Marina Luísa, por parte do pai, uma Krusse, e por parte da mãe, uma Buys. Ambas estas famílias adotaram Portugal como o seu país e operavam negócios em Lisboa e no Algarve, assim como na provisão de munição de boca ao Exército Português em várias ocasiões.
Luiz Pedro, nascido Louis Pierre, era um imigrado francês, como tantos durante a época de D. João V, e como tantos também vinha com um ofício em mente, acabando por se dedicar ao comércio por necessidade. Luiz Pedro publicou alias, em 1747, um livro sobre a educação de meninos, que era ainda leitura recomendada e popular no início de oitocentos.
Lecor. Krusse. Buys. Os 3 apelidos têm todos assim origens internacionais: os Krusse de Hamburgo, os Buys da Hoorn, na Holanda, e os Lecor de Paris, França. Curioso será notar que dos 4 avós de Carlos Frederico, não há um único nacional português, senão Catarina Maria Buys, portuguesa de 1.ª geração, filha por sua vez de um holandês e de uma espanhola.
A ascendência quase toda ela não portuguesa de Carlos Frederico Lecor é algo que o marca em toda a sua vida e carreira, não só pelo seu aspeto físico, de traços exóticos – alto, loiro e de olhos azuis, mas também pelo tipo de educação que providencia, não só inspirada perfeitamente nos ideais iluministas do século XVIII, mas também na forte tradição protestante de alfabetização, combinada com um tipo de formação fortemente ancorada nas necessidades da atividade comercial da sua família.
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Por volta da década de 1770, a família muda-se para Faro, onde aliás os Buys já tinham negócios. É aliás desta mudança que nasce a perceção geral, ainda que errada, que Lecor nasceu em Faro. Esta cidade é aliás a única cidade portuguesa que deu o seu nome a uma rua devido a esse mesmo facto. A justiça aqui foi fruto de equívoco, mas é ainda assim, justiça. Se a cidade onde Lecor nasceu de facto, ainda que com tantas ruas, não lhe presta essa homenagem, pois então que o equívoco se preste a que a cidade de adoção o tenha feito.
Enquanto os seus irmãos, João Pedro, António Pedro e Jorge Frederico, combatiam no Roussilhão, Lecor iniciava a sua vida militar como Pé de Castelo na fortaleza de S. António da Barra de Tavira. Aos 29 anos, muito mais velho do que era então norma, Lecor assenta praça de voluntário e jura bandeiras, perante um oficial e o capelão, a 13 de Outubro de 1793, exatamente quando se iniciava a aula regimental do coronel Sande de Vasconcelos, em Tavira, logo ao lado. O general Teixeira Botelho, que traçou subsídios para a história da Artilharia portuguesa, refere muito acertadamente que a carreira dele "não teve a regularidade habitual do seu tempo". Para um jovem vindo das classes mercantis, sem ascendência nobre, a Artilharia era a única opção que permitia o acesso ao oficialato.
Apenas cinco meses depois, já sargento, Lecor ascende finalmente ao oficialato, sendo nomeado em Março de 1794 ajudante da Praça de Portimão, sendo posteriormente admitido ao 1.º Ano do Curso de Marinha, na Real Academia de Marinha, em Lisboa, que completa com mérito, então já 1.º tenente do regimento de Artilharia da Guarnição do Algarve.
De notar a propósito que, mais de 200 anos depois, em 2014, o Marechal Lecor foi o patrono do 43.º Curso de Formação de Sargentos, uma das poucas homenagens que em Portugal se lhe deu, e a única que o Exército Português lhe dispensou.
A rápida ascensão de Lecor nas fileiras é já manifesta desde o seu início, tendo por base a sua competência académica, ainda que não devemos esquecer a ligação a 'pessoas de qualidade', como era normal na 'sociedade de favores' do Antigo Regime.
Em finais de 1795, Carlos Frederico embarca na Nau Príncipe Real, no âmbito de um destacamento de artilharia do Algarve, e viaja para o Brasil pela primeira vez. É Salvador a primeira terra brasileira que conhece, e onde permanece brevemente até a esquadra retornar a Lisboa em Abril de 1796.
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Fossem quais fossem os objetivos de Lecor, parece que estes já não passavam pela Marinha quando em 1797 é escolhido para capitão de infantaria da recém criada Legião de Tropas Ligeiras, comandada pelo marquês de Alorna. A Legião de Alorna, como também era conhecida, era uma unidade ligeira com o uso combinado das três armas, resultado prático dos ensinamentos da Campanha do Roussilhão. Se não era algo inteiramente novo no Exército Português, era todo um conceito inovador a esta altura e que causou grande resistência na instituição.
O marquês de Alorna, D. Pedro Portugal, é vital para compreender Lecor, pois é na alçada dele, e sob a sua mentoria, que o ainda relativamente jovem oficial começa a despontar. Sendo capitão da 8.º companhia, Lecor serve na Guerra das Laranjas, na área de Castelo Branco, sendo depois promovido a sargento mor em 1802.
Em 1806, quando Alorna é nomeado governador de Armas do Alentejo (e Lecor, aliás, seu ajudante de ordens, já como tenente coronel), fica a comandar interinamente a Legião até que o barão de Wiederhold toma o comando. Nesta altura, já Lecor é um relativamente experimentado oficial superior, ainda que as suas maiores provas se aproximem ainda no horizonte.
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A 21 de Novembro de 1807, Lecor aparece pela primeira vez no radar da História, quando avista tropas francesas em Vila Velha de Ródão, junto ao Tejo. Sem ordens diretas do seu general, mas agindo de sua própria vontade, ainda que decerto em concertação com António de Araújo de Azevedo, parte imediatamente para Lisboa a avisar que os franceses vêm aí. Em Punhete, hoje Constância, aconselha as autoridades locais a desmontar a ponte de barcas sobre o rio Zêzere, o que vem a atrasar Junot por dois dias.
O que Lecor fez nestes dias foi fundamental para que o embarque da corte se pudesse fazer com mais tempo e mais segurança. É de apontar que apesar de o poder fazer, Lecor nunca desmentiu a versão popular de que terá agido sob as ordens de Alorna (“Vá, Sr. Lecor, até ao inferno, se for necessario, porque quero saber onde estão os Franceses: marcham, e não quero que nos surpreendam.”). Teve decerto o palanque, mas sendo um verdadeiro amigo do seu general, e tendo em vista a fama que este obteve de traidor, a partir de 1810, nunca o abandonou, a sua memória e a sua família.
Lecor demonstra estas características de lealdade com frequência durante a sua vida.
Em meados de 1809, já coronel e no comando de uma brigada de caçadores na área de Tomar e sendo convocado pelo general Beresford para Almeida, assim como quase todas as unidades de linha, é o único comandante que se digna a escrever ao general Miranda Henriques a avisá-lo. É o próprio general português que o refere em carta. Não me compete aqui aprofundar as questões políticas da altura, mas o dever de respeito e lealdade de um subordinado a um comandante, apenas Lecor, nessa ocasião, o levou a peito.
Em 1810, quando o Armée de Portugal, comandado por Massena, 'l'enfant cheri de la victorie', monta cerco a Almeida, Lecor, em observação sob o comando de Hill, tenta o contacto com Alorna, que acompanhava os franceses, propondo a Beresford que o deixasse tentar o velho amigo a retornar ao serviço português. O rigor britânico de Wellington e a séria ameaça da III invasão impediram esta tentativa. Lecor tentou, no entanto. Acreditava ainda na redenção do seu amigo.
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Os breves meses que Lecor passou em Castelo Branco em 1801, defronte das forças de Leclerc, no tempo da Legião das Tropas Ligeiras, foram decerto vitais para a ação que levou a cabo como comandante militar da Beira Baixa, em três períodos distintos, entre 1809 e 1812. As relações com a população civil e as milícias nem sempre foram as melhores, mas Lecor destacou-se de tal forma, que no ano posterior à sua saída para o Exército de Operações, 1813, era publicamente recomendado na Gazeta de Lisboa que o novo comandante militar seguisse o modelo fixado por Lecor.
A retirada em Abril de 1812 de Castelo Branco face à aproximação da 2.ª Divisão de Clausel, foi feita sem mácula e na estrita obediência às ordens de Beresford, por oposição ao desastre da Guarda, em que as milícias fugiram em pânico, chegando a perder as bandeiras. É com esta ação que Lecor, já um estrela em ascensão há algum tempo, garante a definitiva passagem ao Exército que marcharia em 1813 sobre Espanha e França.
Ainda que Lecor tenha sido chamado a comandar a brigada portuguesa da recém criada 7.ª Divisão em 1811, conhecida como a divisão dos rafeiros, pelas suas muitas nacionalidades e cores de uniforme, foi logo nomeado novamente comandante militar da Beira Baixa. Em 1813, porém, de novo recebe este comando e desta feita para iniciar a campanha ofensiva luso-britânica sobre o norte de Espanha.
Muitos saberão, pois é bem conhecido, mas digo-o aqui, Lecor foi o único general português que teve o privilégio de comandar uma divisão anglo-portuguesa em combate. Fê-lo na batalha de Nivelle, em Novembro de 1813, quando o exército assaltou as fortificações de Soult a norte do rio. Era comandante interino, a mais ténue das posições, mas cumpriu, de novo, sem mácula, a sua missão. Começava já a trilhar áreas novas e desconhecidas.
Em dezembro de 1813, Lecor é o comandante da Divisão Portuguesa e o oficial português mais graduado no Exército de Operações, já em França. É nesta qualidade que comanda tropas na batalha do S. Pierre, a 13 de dezembro, alguns dirão a mais portuguesa das batalhas desta campanha, e ajuda a manter a linha nos altos de Mouguerre. Acompanhando a brigada do Algarve, ordena uma carga de infantaria de Infantaria 14, e ao fim desse duro dia é ferido ligeiramente.
Quando o Exército Português em Operações retorna a Portugal a partir de Junho de 1814, finda a guerra e deposto Napoleão, é Lecor que comanda todas as unidades, apresentando-se nas paradas em Lisboa com o seu estado maior.
Quem afirmasse, 21 anos antes, que isto iria acontecer, seria decerto apodado de louco. Filho de mercadores, ainda que de grosso e bem relacionados, formado na artilharia, agora o general mais graduado de um exército português vitorioso.
As guerras revolucionárias, que duraram duas longas décadas, mandaram abaixo muitos dos paradigmas e inauguraram de forma dramática toda uma nova era. O elemento social não foi diferente.
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Já por duas vezes, o destino de Lecor se havia relacionado com o Brasil: em 1796, quando foi na esquadra do Brasil, mero tenente, a Salvador da Bahia, e em 1808, quando, em Plymouth, Inglaterra, já coronel, fugido da ocupação francesa de Junot, tencionava embarcar para junto da Corte, no Rio de Janeiro. Não viajou nesta altura, tendo retornado a Portugal em Agosto com a Leal Legião Lusitana.
Tangencialmente também devo fazer nota que em 1805, quando foi originalmente nomeado ajudante de ordens do marquês de Alorna, era a intenção que o seu general ocupasse o importante cargo de Vice Rei do Brasil, o que por razões políticas acabou por não acontecer.
O seu destino ficou definitivamente selado com o do Brasil em 1815, quando foi nomeado Comandante em Chefe da Divisão de Voluntarios Reaes, uma força de quase 5 mil homens, que para aí foi enviada em 1816 com o fim último de invadir a Banda Oriental. Nunca mais abandonou o Brasil e aí viria a falecer.
Antes de partir, fez vacinar os seus homens contra a varíola, ou as bexigas, tomando-a ele próprio primeiro em frente de todos. Por esse ato, foi feito correspondente da Real Academia de Ciências de Lisboa, quando já navegava para o Brasil.
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Para um português, habituado à sua terra, o Brasil era todo um novo mundo com 'aves das cores mais fantasticas' e 'planícies sem limites'. Como o futuro conde de Samodães, comandante do 2.º regimento, o pôs, “tudo n’este paiz é grande e maravilhoso”.
Desembarcado na corte, no Rio de Janeiro, pouco tempo lá ficou e dois meses depois, em Junho de 1816, partiu para cumprir a sua missão.
Aliás, uma das maiores críticas que costuma ser feita ao general Lecor é a de desembarcar o grosso das suas forças na ilha de Santa Catarina e fazer o duro percurso por terra desde aí até à Banda Oriental. Falamos de 800 quilómetros por terra arenosa e erma. Muitos historiadores criticam-no por esse excesso de cautela e/ou falta de habilidade com tão fortes forças, mas recentemente encontrei uma nota do próprio rei, ainda no Rio, dizendo-lhe que não arriscasse os seus soldados no oceano. O inverno austral, as traiçoeiras águas do Rio da Prata e os perigosos ventos pampeiros aconselhavam cautela.
Seja como for, a cautela era preferível, até porque não havia concorrência. A expedição espanhola de Pablo Morrillo, que se destinava a Montevideu, havia sido desviada para a Venezuela e isso soube-se em meados do ano.
Não será de esquecer a importância da logística – uma lição que os oficiais portugueses aprenderam bem com os britânicos durante a Guerra Peninsular, que aconselhava Lecor a tomar o seu tempo.
Não me ocuparei dos heróicos eventos da Segunda Invasión Portuguesa, até porque a maioria deles ocorreram no teatro leste, no interior, onde as forças da capitania do Rio Grande combatiam o grosso oriental de Artigas, mas da lenta e segura aproximação a Montevideu que culmina na tomada da cidade a 20 de Janeiro de 1817.
Apesar de usar o título de capitão general da Banda Oriental quando entra no território em finais de Novembro, é nesta altura que o passa a ser de facto. Nem toda a Banda Oriental se submete (tarefa que só será completada em 1810), mas o importantíssimo porto de Montevideu passa a estar em mãos portuguesas. Lecor não o saberá, mas ele é o responsável pela última aquisição de território do Império Português, ainda que isso apenas se torne oficial em 1821, com a anexação do território sob o nome de Cisplatina.
Nesse dia inicia ele aquilo que Falcão Espalter denominou de Vigia Lecor.
O início do governo português em Montevideu marcou o fim de 6 anos de revolução e lutas intestinas, em que não só os independentistas lutaram contra os espanhois, mas entre si, divididos entre centralistas e federalistas. Ainda que não tenha sido imediato, o novo governador trás de novo a paz e prosperidade ao importante porto. A maioria da população de Montevideu, principalmente os que beneficiam do comércio (e em Montevideu eram quase todos, em diferentes níveis), recebeu Lecor com alívio, ainda que com alguma apreensão.
Mesmo Buenos Aires, que partilhava algum ideário com Artigas, acabou por não intervir e manteve o tratado que tinha com Portugal desde 1812.
O general Lecor, no entanto, revelou ser tudo aquilo que os orientais poderiam esperar. Toda a sua conduta desde que havia entrado na Banda Oriental era conciliatória. Alguns militares seus subordinados queixam-se da sua falta de agressividade, como Saldanha, mas de facto Lecor cumpria as ordens que tinha recebido. Não seria um conquistador só por ser um conquistador, mas tentaria ser um libertador, ou tanto quanto possível.
Tomás de Iriarte, um oficial argentino que o conheceu, diz dele que “no fué el idolo del pueblo, tampoco puede aseverarse que alimentasen contra él sentimientos de odio y reprobacion personal”.
Quem o conheceu nesta altura revela bem qual a postura política de Lecor. A historiografia uruguaia acompanha até hoje esta visão e não o alça a um tirano estrangeiro, mas no pior dos casos, um mal necessário. Muitos vêm nele mais vantagens que desvantagens, apesar de ser um invasor.
A sua figura física não negava o soldado endurecido nas campanhas europeias, mas não lhe faltava urbanidade ou cortesia. Sem manifestar um afetação de maneirismos, era afável e complacente, sem que perdesse o respeito de quem lidava com ele. Lecor conseguia complementar o seu semblante sério e marcial com a compostura de um homem culto e habituado à alta sociedade.
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Em 1822, veio a independência do Brasil e, decerto, a decisão mais monumental que Lecor tomou na sua vida: a de a apoiar na pessoa do Principe D. Pedro, então regente do Brasil. Lecor teve a plena noção do significado da sua decisão, e tomada essa decisão, assumiu-a como sua. Pesem embora outra fatores, como ter casado em 1818 com D. Rosa, uma dama montevidenha, sentiu claramente uma forte afinidade com o projeto brasileiro.
Associado a isso, e como escreveu em carta a José Bonifácio, reagiu aos “planos evasivos do partido Espanhol, dominante nas Cortes, porque no duro cativeiro de S.M.F. nada me parecia mais digno do que obedecer a Seu Augusto Filho”.
O capitão general da Cisplatina não esqueceu também decerto a luta intestina de muitos dos seus subordinados enquadrado no famigerado “Conselho Militar”, e que levava a Divisão de Voluntarios Reaes a um ponto de insubordinação intolerável.
Como Lecor refere, essa decisão foi daquelas que um homem como ele só poderia tomar uma vez na vida. Nesse mês de Setembro de 1822, o seu compromisso com o Brasil foi assumido de corpo inteiro. O general passava a ser um dos “heróis da brasileia liberdade”, conforme nos dita um poema épico escrito anos depois.
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Em Abril de 1826, é nomeado Comandante em Chefe do Exército do Sul, no âmbito da Guerra da Cisplatina. Chega ao Rio Grande em Agosto, onde é recebido como um herói pelo povo gaúcho, como já o havia sido em 1816.
Não tem tempo de fazer obra, pois D. Pedro exonera-o apenas um mês depois, substituindo-o por Barbacena. A fria receção que recebe do imperador em Porto Alegre é decerto um dos pontos mais baixos da sua carreira.
Os argentinos, porém, ganham ímpeto no conflito e as forças brasileiras sofrem uma derrota no Passo do Rosário, em Fevereiro do ano seguinte. Em Agosto de 1827, o visconde da Laguna, no Rio de Janeiro, é de novo nomeado Comandante em Chefe e retorna ao Rio Grande. Encontra um exército desorganizado e desmoralizado e propõe-se, desde logo, a reformar o contacto com os negociantes locais, de forma a garantir o sustento e transporte. O seu crédito e reputação política é ainda enorme no Rio Grande e todos nutrem por ele uma enorme simpatia.
Durante o ano seguinte, Laguna mantém o Exército do Sul intacto, novamente acusado de inação ou até covardia. Os seus subordinados apelidam-no de Cuntactor Segundo, o adiador (como o romano Fábio Máximo Cuntactor que evitava combater Aníbal na II Guerra Púnica). O epíteto se não é, em termos marciais, o mais elogioso, não é também o mais ofensivo. Era o requerido para a defesa do Rio Grande, de forma a deter quaisquer incursões argentinas.
Quando a paz vem em 1828, o Visconde da Laguna já não é um homem novo, tem 64 anos, mais de 30 passados no Real Serviço, muitos deles em campanhas. É claramente o fim da sua carreira. Retorna de vez ao Rio de Janeiro e reforma-se como Marechal do Exército.
O seu último comando revela mais um pouco do homem. Em 1835 , a regência nomeia-o comandante superior da Guarda Nacional do Rio de Janeiro; um cargo simbólico, mas demonstrativo de que mantinha a confiança do Brasil, mesmo após a abdicação de D. Pedro.
Carlos Frederico Lecor, Visconde da Laguna e Grande do Império, fecha os olhos pela última vez a 2 de Agosto de 1836, na sua casa junto à ponte do Aterrado, no Rio de Janeiro. É enterrado nas catacumbas da Igreja de S. Francisco de Paula.
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Concluo aqui o meu elogio a esta extraordinária figura histórica, algo extenso e espero que não muito maçudo, com a esperança de lhe ter honrado a memória de soldado, que pertence tanto a Portugal quanto ao Brasil. Espero ter também ajudado ao conhecimento de um homem assaz desconhecido, quase criminalmente, num e noutro lado do Atlântico, mas daqueles que sem grande alarido, mas com grande competência, lealdade e devoção, ajudou à grandeza dos nossos dois países.
Muito obrigado pela vossa atenção.