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2 de julho de 2017

Lecor aluno universitário na Real Academia de Marinha (1794-1795)


Este blogue chama-se Em Busca de Lecor por uma razão. Sou frequentemente lembrado do porquê. Desde 2005, sensivelmente, que busco constantemente este militar e periodicamente encontro nova informação. Que não nasceu em Faro, como se pensava, mas em Lisboa. Que começou a carreira como Soldado pé-de-castelo em Tavira, de forma a frequentar a aula regimental do tenente coronel Sande de Vasconcelos (um requisito para a promoção a oficial de patente), e mais algumas coisas.

Carlos Frederico Lecor, como ajudante em Portimão e depois como 1.º tenente da Artilharia de Faro, foi admitido e completou o 1.º Ano do Curso de Oficial de Marinha, na Real Academia de Marinha, em Lisboa, no ano lectivo de 1794/1795.

Encontrei a informação disponibilizada em-linha junto do Arquivos Histórico de Itamarati, do Ministério das relações Exteriores da República Federativa do Brasil, através do Rede Memória da Biblioteca Nacional. 
A pasta consiste de variados comprovativos, alvarás e cartas patentes relacionadas a Lecor, que o mesmo fez chegar ao ministério, com toda a certeza para processos relacionados com o cargo de Capitão General da Banda Oriental. Ainda não entrada no futuro Império, como Província Cisplatina, era de jure uma província espanhola ocupada.

Através desta fonte, os primeiros dois postos de Lecor como oficial são inequivocamente nomeados, tendo ele iniciado a frequência da Real Academia já com patente, com o patrocínio do Capitão General do Algarve. Na verdade, Carlos Frederico é o quarto irmão Lecor que D. Nuno Jose Fulgêncio de Mendonça e Moura, 6.º conde de Val de Reis, patrocina.

(Já indiciei no passado que muitos familiares próximos, incluindo o padrinho e tio, eram fornecedores de munição de boca, já desde a Guerra Fantástica, Carlos Frederico Krusse a certa altura responsável pelos fornecimento das tropas nos governos d'Armas do Douro e de Trás os Montes. Outras histórias para outra postagem).

“Atestados de Serviços e Nomeações”
Arquivo Histórico do Itamaraty (cota: AHI REE 00351)

Original (em-linha) [abre janela]
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/302675


De 5.10.1794 a circa 16.7.1795, frequenta o primeiro ano do curso de Marinha da Real Academia de Marinha, tendo feito exame de Aritmética, “no qual ficou plenamente approvado, para continuar na Aula”. Conclui o ano sendo aprovado em exame, estando habilitado “para passar a ouvir as Liçoens do segundo anno”. Não parece que o venha a fazer, pois em dezembro embarca na Esquadra do Brasil como 1.º tenente de artilharia, destacado do regimento na nau Príncipe Real. 

O Currículo do 1.º ano era constituído pelas seguintes disciplinas: Aritmética, Geometria, Trigonometria plana, o seu uso prático, e os princípios elementares da Álgebra até às equações de 2.º grau inclusivamente.

O curso era equivalente ao ensino universitário, mas por uma razão de exclusividade a Real Academia de Marinha não se podia chamar Universidade (facto que só cessa em 1911, quando as escolas politécnicas de Lisboa e Porto, e outras instituições, se tornam universidade de nome, se já há muito de facto). Será desta altura que Academia se consolida como o termo para as instituições militares universitárias portuguesas, até hoje - Excepção curiosa para a Escola Naval que é uma herdeira direta da real Academia.

[Documento n.º 2] 19 de Janeiro de 1795

Custodio Gomes de Villas boas, Ten.te Coronel do Regimen.to de Art.ª do Porto, com exercicio de lente efectivo da Cadeira do primeiro ano na Real Academia de Marinha

Attesto que Carlos Frederico Lecor, Ajudante de Infantaria, com exercicio na Praça de Villa Nova de Portimão, frequentou com muito zelo, e approveitamento a Aula do primeiro anno, de 5 de Outubro passado até o presente, com duas faltas com justa cauza e que fes o seu exame de Arithmetica, no qual ficou plenamente approvado, para continuar na Aula do primeiro anno do Curso da Marinha. E por assim ser verdade, lhe mandei passar a prezente, que vai por mim assignada, e firmada o sêllo desta Real Academia. Lisboa, 19 de Janeiro de 1795.

[Documento n.º 1] 16 de Julho de 1795

Custodio Gomes de Villas boas, Ten.te Coronel do Regimen.to de Art.ª do Porto, com exercicio de lente efectivo da Cadeira do primeiro ano na Real Academia de Marinha


Attesto que Carlos Frederico Lecor, Primeiro Tenente do Regimento de Artilharia do Algarve, e Discipulo da primeira Aula desta Real Academia de Marinha, tendo frequentado a mesma Aula com duas faltas com justa cauza, fes ultimamente o seu exame, no qual mereceo ser approvado para passar a ouvir as Liçoens do segundo anno. E por assim ser verdade, lhe mandei passar a prezente, que vai por mim assignada, e firmada o sêllo desta Real Academia. Lisboa, 16 de Julho de 1795.


20 de outubro de 2015

6 de dezembro de 2014

Fontes: A Encruzilhada da Memória (Novembro de 1807)


Palácio da Ajuda (século XIX)

“Vá, Sr. Lecor, até ao inferno, se for necessario, porque quero saber onde estão os Franceses: marcham, e não quero que nos surpreendam.”


Tendo sido escrita, da pena própria ou por instrução de D. Leonor de Almeida, 4.ª marquesa de Alorna (1750-1839), o certo é que o autor da Memória Justificativa do Marquês de Alorna quase de certeza recebeu a parte do próprio, então tenente coronel, Carlos Frederico Lecor, seja direta ou indiretamente. São uma fonte que ajudam a aclarar os momentos históricos da última semana de novembro de 1807, enquanto o Corpo de Observação da Gironda materializa aquela que virá a ser conhecida como Primeira Invasão Francesa, entrando em Portugal por Segura e Salvaterra do Extremo, a partir do dia 19. Alguns elementos não aparecem referenciados em mais parte alguma e mesmo considerando algum esforço panegírico ou hiperbólico por parte da autora da Memória, não posso deixar de o tomar como extremamente relevante. Apesar de sempre próximo da família desde, pelo menos, 1802, e tendo visitando D. Leonor a Londres na primavera de 1808, em 1815, em Lisboa, Lecor, tenente general da Divisão de Voluntários Reais, é frequente visita para jantar na casa da marquesa; aí decerto, a história terá sido contada com mais vagar, mais minúcia.

Há, neste interessante opúsculo, algumas discrepâncias em locais e datas, nomeadamente o dia em que o Conselho de Estado reuniu pela última vez antes do embarque para o Brasil (24 de novembro, e não 25), ou o destino de Lecor depois de ir a casa do Secretário de Estado D. António de Araújo (o Príncipe estava no palácio da Ajuda, e não Mafra). 
Outras fontes apontam a zona entre Abrantes e Sardoal como o sítio onde Lecor observa pela primeira vez os franceses, sendo que esta Memória o coloca perto de Castelo Branco na ocasião. A Memória diz que foi a 24 de novembro, mas foi a 23, pois, segundo nos informa o Marquês de Fronteira, Lecor cavalgou em 30 horas, “à rédea solta”, para Lisboa, sendo que o Conselho de Estado de 24 realiza-se com base no relatório oral do dedicado ajudante de ordens.

Os quatro correios que a autora da Memória atribui como sendo destacados a Carlos Frederico Lecor, dois deles são localizados, na forma de cartas, em D. João VI Príncipe e Rei, de Angelo Pereira. Observando o progresso dos franceses, Lecor envia um desses correios com carta de Santarém, a 26 de novembro, e outro do Cartaxo, no dia seguinte, esta última missiva entregue já a Corte se achava embarcada na esquadra que partiria, dias depois, para o Brasil. No dia 29 ou 30, já os franceses em Sacavém e a horas de entrar em Lisboa, Lecor retorna a Lisboa e vai a Benfica, onde o jovem marquês de Fronteira D. José o descreve vividamente, “cheio de poeira e lama, com o uniforme em desalinho, porque havia oito ou dez dias que se não despia, e triste, respondendo com difficuldade às perguntas que minhas tias lhe faziam”.

Mais observações podem ser feitas, como a noção que foi o Marquês de Alorna que ordenou que Lecor notificasse os magistrados que fizessem desviar pontes, de forma a atrasar os franceses, sem ter instruções de Lisboa para isso, mas julgo que farei melhor deixar falar o excerto da Memória que hoje aqui trago, para que o caro Leitor possa fazer a sua própria leitura.

Excerto: Memória Justificativa do Marquez d’Alorna, Hamburgo, Tip. F. H. Nestler, 1823.

Abrantes hoje (foto: Manuel Anastácio)
[p.5] « [...] é justo passar mais rapidamente para o momento decisivo, em que o Princepe Regente, El Rey, que Deus Guarde, houvéra certamente succumbido victima dos Francezes, a quem tinha impedido a entrada pelo Alem-Tejo, onde elle Marquez governava no anno de 1807, que desviando-se tentarião outra varéda, chamou o seu Ajudante, o Coronel Carlos Frederico Lecor, e lhe disse ertas [sic] notaveis palavras: “Vá, Sr. Lecor, até ao inferno, se fôr necessario, porque quéro saber onde estão os Francezes: marchão, e não quéro que nos surprehendão.” Acrescentou a isto, que se o dito os encontrasse, não parasse para vir informa-lo, mas que á rédea solta fôsse avisar S. A. R., então Princepe Regente, hoje El Rey que Deus Guarde, tendo cuidado ao mesmo tempo de recomendar aos Magistrados, que destruissem todas as pontes, a fim de retardar a marcha do inimigo.
No dia 24 de Novembro, o Coronel Lecor, chegando perto de Castello Branco, encontrou paisanos assustados e fugitivos: tomou consigo um destes paisanos, e se fez conduzir ao lugar aonde elles dizião que tinhão visto os Francezes: na distancia de menos de um quarto de légoa, avistou o Corpo, que avançava em grande desordem; voltou a rédea, e no dia 25 de Novembro pela manhan, chegou á Casa do Secretario d’Estado Antonio d’Araújo, que // [p.6] immediatamente o mandou para Mafra, onde S. A. R. Se achava. O Coronel Lecor dèo parte ao Princepe das Ordens, que tinha recebido do Marquez d’Alorna, do encontro dos Francezes, e do receio bem fundado, de que dentro de 30 horas chegassem a Lisboa.
Juntou-se logo Concélho d’Estado; o Coronel Lecor ahi foi chamdo para dar conta do que sabia. S. A. R. lhe ordenou (*) que voltasse acompanhado de quatro Correios que virião, uns depois dos outros, informa-lo dos progréssos que fazia o Exército Francez desde que o avistasse, notando a hora, e o lugar em que se achava, e voltasse o Coronel Lecor com o ultimo correio; o que elle fez [...].

(*) Estas ordens, que o Coronel Lecor recebéo por escripto, estão provavelmente registados na Secretaria d’Estado; e as ordens que se entregárão ao Coronel, passados muitos mezes lhas pedio o Principal Sousa, para gloria, dizia elle, do Marquez d’Alorna, que tanto tinha contribuido para salvar El Rey e a Familia Real; gloria que lhe competia na historia da restauração (que tinha encommendado ao Dr. José Accursio das Neves. [...] »


Referências

- S/Autor, Memória Justificativa do Marquez d’Alorna, Hamburgo, Tip. F. H. Nestler, 1823.

- BARRETO, José Trazimundo Mascarenhas, Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926;
- PEREIRA, Angelo, D. João VII Príncipe e Rei: A Retirada da Família Real para o Brasil, 1807, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1953.



VER TAMBÉM

A Lenda da Ponte sobre o Zêzere [Parte I] [Parte II]

9 de maio de 2011

Desfile de 18 de Dezembro de 1815

"LISBOA 18 de Dezembro.

A Brilhante parada que honrem, por motivo do anniversario da nossa Augusta Soberana, fizerão as Tropas de Linha e Milícias desta Capital , ás quaes se veio reunir a nova Divisão dos Voluntários Reties do Príncipe, commandada em Chefe pelo Tenente General Carlos Frederico Lecor, apresentou ao numeroso concurso dos habitadores desta Cidade que a vèlla se apinhou , hum dos mais pomposos espectáculos pelo aceio e garbo marcial de todos os Corpos

Entre os de linha se não podia facilmente designar a algum delles a palma da primazia; pois se notava em todos o particular esmero dos seus respectivos Chefes em apresentarem as tropas do seu commando dignas do sempre illustre nome de Guerreiros Portuguezes. Ao vêr estes aguerridos Soldados, despertavão-se em nossa imaginação as victorias que coroarão de louros os guerreiros Portuguezes no Douro, no Bussaco, em Albuera , em Ciudad-Bodrigo, em. Badajoz, em Arapiles, em Vittoria, nos Pyrenéos, cm S. Sebastião, no Nivelle, Nive, e Adour, em Orthez, e nas margens do Ets e Garona, em toda a parte em fim onde na ultima gloriosa luta lhes foi preciso combater, devendo-lhes em grande parte Portugal a independência, a Hespanha a liberdade, a França o paternal Governo dos Bourbons, a Inglaterra e o seu Grande Wellington trofeos e gloria immortal pela invencível força com que, unidos os Portuguezes e Bretões debaixo do commando de Arthur, contrastarão intrépidos os bellicosos Exercitos e os mais hábeis Generaes do inimigo commum da Europa.

Entrarão pois sucessivamente as Tropas de Linha e Milicias na espaçosa Praça do Terreiro do Paço, e ruas immediatas, depois das 11 horas, e ficou reservada a Praça do Rocio para os quatro Batalhões de Caçadores, que formão as duas Brigadas do Corpo de Voluntários Reaes do Príncipe, que perto da meio-dia entrarão e se formarão na dita Praça, attrahindo particular attenção dos espectadores a firmeza, continência marcial, e alto grão de disciplina a que este Corpo tem sido elevado pelo seu illustre Commandante em Chefe, e pelos Brigadeiros Avellez, e Pizarro, que vinháo á frente das suas respectivas Brigadas. - Chegou pouco depois á Praça do Rocio o Illustrissimo e Excelentissimo Tenente General Francisco de Paula Leite, Governador das Armas desta Capital e Provincia, e cumprimentando o Illustrissimo e Excelentissimo Tenente General Lecor, feitas as continencias pela tropa, e passada revista aos quatro Batalhões, se encaminhárão ambos os Generaes ao Terreiro do Paço, d’onde voltárão a postar-se, com os seus luzidos Estados Maiores, (unindo-se-lhes o Illustrissimo e Excelentissimo Tenente General, d’Artilheria, José Antonio da Rosa), junto do Portão do Palácio do Governo.

[pormenor do Terreiro do Paço, ou Praça do Comércio, hoje]

Tinha dado o Castello de S. Jorge e as Fortalezas a costumada salva ao meio-dia; e á huma hora em ponto começárão no Terreiro do paço as tropasa as descargas, principiando cada huma das tres pelos Parques de Artilheria seguida immediatamente em toda a linha da Infanteria. - Acabadas as descargas passárão os Generaes Leite e Lecor ao meio da Praça, onde o primeiro entoou por tres vezes o Viva á nossa Augusta Soberana, a que em toda a linha as tropas e o povo correpondêrão com enthusiasmo; acção que repetio o General Lecor, com as mesmas circunstancias. Passou depois o Governador das Armas, no lugar que anteriormente occupava, e principiárão as tropas a desfilar pela sua frente na ordem seguinte:

Rompião a marcha dois Esquadrões de Cavallaria dos Regimentos n.º 1 e 4, e após elles a Cavalaria dos Voluntarios Reaes do Commercio; vinha depois hum Parque de Artilheria Montada, do Regimento de Artilheria n.º 1, de 3 peças e 1 obuz; e, formados em columna, começárão a marchar os Voluntarios Reaes do principe,a cuja frente se [posicionou] o seu Comandante em Chefe, que, conduzindo a Divisão até principiar a desfilar pela frente do Governador de Armas, passou a tomar lugar ao lado deste, (ao qual estava tambem unido o Tenente general Rosa), o que igualmente (...) fazendo os dois Commandantes das Brigadas desta Divisão. - Marchárão em seguimento della os dois Batalhões de Artilheiros Nacionaes Oriental e Occidental,e atraz delles hum Parque de 5 peças e 1 obuz, do sobredito Regimento de Artilheria n.º1. - Forão avançando immediatamente a Brigada de Infantaria n.º 1 e 16, outro Parque de 3 peças e hum obuz, e a Brigada n.º 4 e 13, o Regimento da Guarda Real da Polícia, e o ultimo parque de Artilheria Montada de 5 peças e 1 obuz. -Desfilárão consecutivamente os dois Regimentos de Milicias Oriental e Occidental, finda a passagem dos quaes se retirárão o Governador das Armas, e os Tenentes Generaes Lecor e Rosa, ficando o innumeravel concurso regosijado de vêr este esplendido apparato militar, que no seio da doce paz se não mistura com funestas recordações."

In: Gazeta de Lisboa, n.º 299, 19.12.1815

15 de janeiro de 2011

Lorenzo Caleppi, ou como o audaz Arcebispo de Nisibi enganou um dia Junot


“O tempo na verdade era delicioso, e convidava a viajar; em huma bella manhã da Semana da Páscoa procurou-se o velho, e elle tinha abalado com os trastes. Com effeito teve a habilidade de transportar-se para Inglaterra, com quasi tudo o que lhe pertencia, em hum navio, que sahio licenciado por Junot.”
José Accursio das Neves, História Geral da invazão dos Francezes (1810), p. 222.


Assim partiu ‘à italiana’ o velho italiano Monsenhor Lorenzo Caleppi (1741-1817) da Lisboa ocupada de 1808, não sem antes escrever uma carta ao general Junot, agradecendo-lhe a simpatia, mas prometendo-lhe que “agitado pelos gritos da [sua] consciência” (1), deveria partir para o Brasil e cumprir o seu papel de Núncio Apostólico junto à corte legítima.

Após não ter conseguido embarcar na esquadra que levou os nossos melhores para o Brasil nos últimos dias de novembro de 1807, Monsenhor Caleppi ficou em Lisboa, único embaixador que o fez, e conspirou activamente com os ajudantes de ordens do Marquês de Alorna, o nosso Carlos Frederico Lecor e o major Bocaciari (de triste destino, a falar aqui em breve), para que todos fugissem para a esquadra inglesa nas costas portuguesas. Os três não conseguiram convencer Alorna, já preso aos franceses, não sem remorsos (outra história!), mas por alturas da Páscoa, em torno do dia 18 de Abril, lá tomaram o caminho do exílio, recusando o jugo revolucionário. Caleppi escusou-se por carta a Junot, que estava doente e não poderia ir a uma festa, mas nessa mesma noite, vestido de pescador lá ia ele ao seu destino.

Lorenzo Caleppi nasceu em Cervia (Ravenna, na costa adriática da Itália) em 29 de Abril de 1741, filho do Conde Nicola Caleppi e Luciana Salducci, e foi ordenado padre em 1772. Rapidamente, escalou a hierarquia do Vaticano, assumindo-se como um dos mais promissores diplomatas da Igreja. Em 22 de Fevereiro de 1797, esteve presente e assinou o Tratado de Tolentino [na foto ao lado, Caleppi é o segundo a contar da esquerda], com que a Igreja capitulou de vez perante o Directório Francês e Napoleão.


Segundo na comitiva do Vaticano na negociação e assinatura do Tratado de Tolentino, atrás do Cardeal Alessandro Mattei, o próprio Napoleão, tendo-o conhecido na Itália uma vez (provavelmente durante as negociações ou a assinatura do tratado), observou que “toda a arte do mais subtil xeique turco era mera simplicidade comparada com a astúcia de Caleppi” (2). Ao assinar, numa ocasião, um tratado com Murat, Caleppi colocou um par de óculos escuros verdes, para que não se visse o seu semblante. Para Laura Junot, isso mostra o homem.

Em 23 de Fevereiro de 1801, é eleito Arcebispo de Nisibi, sendo consagrado na catedral de Frascati. Nomeado Núncio para Lisboa nos finais desse mesmo ano, chega a Lisboa no dia 22 de Maio de 1802.


Em 1805, Laura Junot conhece-o em Lisboa, por ocasião do breve consulado do seu marido na Corte, e diz dele que “a sua astúcia combinada com a sua extensa e profunda informação, tornava a sua companhia extremamente interessante”, e que “fazia tudo [...] com bom gosto, sem qualquer indício de servilismo”. (3)

Monsenhor Caleppi, como um dos dois únicos embaixadores remanescentes em Lisboa (o outro era o da Rússia, e que se reúne à Corte no Rio, penso que em 1812, por via dos Estados Unidos), e por sua própria inclinação política, tudo fez junto de variadas altas instâncias da sociedade portuguesa, para que fugissem para o exílio, mas com poucos resultados, acaba por escapar ele próprio, deixando o seu próprio n.º 2 na Nunciatura, Vincenzo Macchi, futuro cardeal, para ser posteriormente expulso por terra até aos Pirinéus. Caleppi leva com ele, pouco tempo depois, pelo menos o nosso herói Carlos Frederico Lecor e José Tomás Bocaciari, os ajudantes de ordens de Alorna.

Na sua carta a Junot, jogando o mesmo jogo cortês do comandante da ocupação estrangeira, Caleppi despede-se de Junot, trocando-lhe as voltas, decerto com um sorriso enquanto a ditava:

“A negação dos passaportes, para poder embarcar-me, soffrida pelo espaço de quatro mezes, os incommodos, e tudo quanto tenho supportado neste intervallo, sem os poder conseguir, me tem muitas vezes feito recear, que alguma calumnia tenha enganado a V. Excelencia, [...] sobre a minha pertenção. [...] Por felicidade minha V. Excelencia nestes ultimos dias me fez o maior obséquio, certificando-me repetidas vezes pela sua honra, que nada, absolutamente nada, havia contra a minha pessoa, e que a negação dos passaportes, para o meu embarque, era sómente huma medida, não devendo a França (me dizia V. Excelencia) facilitar aos Embaixadores meios de transportar-se a hum paiz, com quem estava em guerra.” (4)


Lá se foi Caleppi, com certeza desenhando na mente a cara do grande Junot, após brilhante saída de cena. Essa mesma saída de cena é fortemente ovacionada no Rio de Janeiro, quando o Núncio lá chegou, assumindo o seu papel enquanto embaixador da Santa Sé, o primeiro do novo mundo.


Em 8 de Março de 1816, já com a guerra terminada na Europa, e uma prestes a decorrer no Rio da Prata (no comando, o nosso Carlos Frederico Lecor), Lorenzo Caleppi é criado Cardeal, embora nunca tenha recebido o solidéu vermelho. Dez meses depois, a 10 de Janeiro de 1817, um mês antes de Lecor conquistar Montevidéu, o Arcebispo de Nisibi falece com quase 76 anos de idade. Como sua última vontade, é sepultado no franciscano Convento de Santo Antônio [na foto], no Rio de Janeiro.

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(1) Carta de Lorenzo Caleppi a Junot, 18.4.1808, in: José Accursio das Neves, História Geral da invazão dos Francezes (1810), p. 222-227.
(2) Laura Junot (1832), Memoirs of the Duchess d’Abrantes, Vol. IV, London: Richard Bentlet, pp. 242-245 [minha tradução].
(3) Ibidem
(4) Carta de Lorenso Caleppi a Junot, 18.4.1808, op. cit.

12 de maio de 2008

Um dia a lembrar...

No final da Guerra Peninsular o Exército Português de Operações retornou a Portugal, tendo cá chegado em finais de Agosto de 1814 (provavelmente no dia 25). Uma testemunha, D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto, 5.º Marquês de Fronteira, então com 12 anos de idade, deixou escrito o seguinte:

"A entrada dos corpos foi brilhantissima. Recordo-me de vêr entrar os Regimentos de Cavallaria n.º 1 e n.º 4, commandado este pelo bravo Conde de Penafiel que, apesar da sua grande fortuna e independencia, fez todas as campanhas da Guerra peninsular, os Regimentos de Infanteria n.ºs 1, 4, 13 e 16, sendo o 13 commandado pelo jovem João Carlos de Saldanha, hoje Duque de Saldanha, que apenas tinha vinte e quatro annos, e um numeroso parque de artilharia. Á frente d'esta brilhante columna vinha o General Lecor seguido d'um bello Estado Maior e de muitos officiaes superiores que, tendo feito a Guerra peninsular, mas não estando nos seus corpos, se agregaram ao Estado Maior para gozarem, e com justiça, das honras d'aquelle dia.
Foi por esta occasião que vi, pela primeira vez, o General Luiz do Rego que tanta gloria adquiriu durante a guerra. Estava na força da edade e tinha o ar marcial que sempre o caracterizou. Foi saudado pelos habitantes de Lisboa com grande enthusiasmo.
Os corpos mal tinham espaço para desfilar por secções, porque o povo era tanto que, a todos os momentos, interrompia a marcha. Vi os porta-machados do Regimento 4 e uma parte da companhia de granadeiros, levados em triumpho nos braços do povo, quando passavam pela frente do palacio onde estavam os Governadores do Reino, numa das varandas".

fonte: Memórias do Marquês de Fronteira e d'Alorna, D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto (v. 1), Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926 (1861) - pp.131-132.

Noutro sítio, aqui, levantado pelo Prof. Mendo Castro Henriques, pode-se ler também o testemunho de Manuel José Maria da Costa e Sá, do qual destaco duas pequenas histórias deste ajuntamento, ao mesmo tempo as maiores do mundo para quem as viveu e para quem as lê hoje:

"Uma Velha de maior idade, dirige-se ao Rossio, ali pergunta por dois Filhos, que parece tinha no Regimento N.° l de Infantaria, sabe que são ambos mortos, e com uma energia verdadeiramente expressiva levanta as mãos aos Céus, “Bendito sejais DEOS. Pai meu, (diz), que mos concedeste para acabarem no seu Serviço, e no do meu Príncipe”: e mudança alguma mais se lhe observa: a outra, um Soldado que se apresenta, ao passar o Regimento N.° l de Infantaria, sem uma perna perdida em combate; "este" diz hum Indivíduo dos circunstantes, "mostra ter encarado os Inimigos", “Sim Senhor..”, responde ele, “…mas fiquei impossibilitado de o poder encarar muitas vezes, pois perdi esta perna no principio da Campanha, e fiquei inútil, e não pude colher bastante gloria, paciência”, dizia lacrimejando, “mas ainda encostado a um muro, como tenho os braços sãos, posso mostrar que sou Português” (...)".

28 de março de 2008

Oficial Iluminado


Já tenho aqui referido algumas vezes o que Lecor teve de emblemático na representação de um novo tipo de oficial superior do Exército Português, nascido da Burguesia mercantil, que vem, de certa forma, substituir a Nobreza, classe que mantinha, até inícios de oitocentos, o privilégio das chefias.

Referi também, e não com algum sentido de ironia, que terá sido com toda a certeza, um desses nobres, D. Pedro de Almeida Portugal, 3.º Marquês de Alorna, que liderou a mudança. José Norton, em O Último Távora, demonstra bem este período e toda uma nova casta de oficiais nobres na senda do Iluminismo português, fruto do trabalho do Marquês de Pombal e do seu Real Colégio dos Nobres. Também sei que os Alornas já vinham de uma longa tradição francófila, avançada no seio da velha Nobreza portuguesa - a análise da biblioteca do 1.º Marquês de Alorna mostra-nos isso, com uma percentagem bastante grande de livros não-religiosos, coisa relativamente estranha no contexto da Alta Nobreza.

Lecor privou durante bastante tempo (10 anos) com o seu General, Marquês de Alorna, tomando historicamente o seu lugar na vanguarda do novo pensamento militar português.

Assim, já após a Guerra Peninsular, onde se estabeleceu definitivamente como um novo tipo de comandante, fruto, ao mesmo tempo do rigor britânico e da sua herança pessoal e profissional, Lecor vê-se com o poder de alterar o estado das coisas. Enquanto comandante da Divisão de Voluntários Reais do Príncipe, e durante a longa preparação do corpo em Belém, no ano de 1815, o Tenente-General Lecor procede a uma geral vacinação dos homens da sua Divisão, pelo que no ano seguinte foi subido à consideração das mentes pensantes do nosso Portugal.

Em sessão pública da Academia Real das Sciencias de Lisboa, de 14 de Junho de 1816, o Doutor Justiniano de Mello Franco, ao dar notícia dos indivíduos que se distinguiram em prol da saúde pública em Portugal, anuncia o seguinte:


Foi nomeado Correspondente, e obteve o competente diploma o Ill.º e Ex.mº Snr. Carlos Frederico Lecor, Tenente General, Commandante da Divisão de Voluntarios Reaes do Principe. Este habil General fez vaccinar muitos dos seus Soldados nos ultimos dias da sua partida, e deo as ordens necessarias, para que a vaccinação continuasse durante a viagem.
Aqui fica, sem mais análise que a feita ao início deste post, o resultado das grandes alterações no exército e na sociedade portuguesa, na qual vemos o nosso amigo Carlos Frederico, cavalgando na vanguarda.

* * *

“O Exmo. Sr. General Carlos Frederico Lecór, querendo que a Tropa que conduzia, e ia Commandar ao Rio de Janeiro, fosse vaccinada, os que o percisavão, antes de embarcar, não só concorreo com ella á operação , mas S. Ex.ª, mesmo quiz ser vaccinado o primeiro, e em presença da sua gente , julgando até honrar-se com fazer á instituição Vaccinica a honra de ser seu correspondente, de que com muito boa vontade se-lhe-deo competente Diploma, e as graças por tão delicado comportamento.”

Jornal de Coimbra, Volume IX – Parte I, n.º 46, Lisboa, Imprensa Régia, 1816. p. 252